*por Eduardo Mesquita Kobayashi, advogado, mestre e doutorando em Direito Comercial pela Universidade de Tóquio

Em uma perspectiva comparada, o serviço público no Japão é eficiente em termos de custos diante dos padrões internacionais. A proporção de gastos do governo central com a remuneração dos funcionários em relação ao PIB é a mais baixa dentre os países avaliados pela OCDE, e a quantidade de funcionários públicos por 1000 habitantes é muito inferior à de outras grandes economias.
Proporção de despesas do governo central com funcionários públicos em relação ao PIB:
(Porcentagem) | |
Brasil | 13,3 |
França | 12,8 |
EUA | 9,8 |
Alemanha | 7,5 |
Japão | 5,5 |
Funcionários públicos em relação ao total de trabalhadores:
(Porcentagem) | |
França | 21,3 |
Reino Unido | 16,4 |
EUA | 15,2 |
Brasil (2013) | 12,1 |
Alemanha | 10,5 |
Japão | 5,9 |
Se comparamos não só com o Brasil, que está abaixo da média na proporção de servidores por habitante, mas acima nos gastos com remuneração, eterno ponto fora da curva no mau sentido, os números do Japão impressionam.
Por trás dessa eficiência, existe um modelo de serviço público com diversas peculiaridades em termos de contratação e gestão de pessoal. Dentre essas peculiaridades, se destacam, principalmente, a) limitada quantidade de indicações políticas (ou cargos comissionados) na administração pública, b) a contratação simultânea, todos os anos no mês de abril, dos aprovados no concurso público anual do exercício anterior, c) a constante transferência (geográfica e funcional) dos funcionários, de forma que cada servidor passa apenas 2 ou 3 anos em uma mesma posição, d) a inexistência de descrição específica da função de cada servidor (ou seja, não são contratados para cargos específicos) e finalmente e) restrição de direitos trabalhistas.
Vejamos, portanto, as linhas gerais do sistema.
1) Serviço Público na perspectiva constitucional
Numa perspectiva histórica, com a ocidentalização do governo após a Restauração Meiji no final do século XIX, foi criado um serviço público no qual os funcionários públicos eram identificados como “servidores do imperador”. Entretanto, após a derrota na Segunda Guerra Mundial, essa perspectiva foi modificada com a substituição constitucional da soberania do imperador pela soberania popular. Dessa maneira, os funcionários se tornaram “servidores da comunidade como um todo” (art.15 da Constituição do Japão).
Nesse cenário de transformação da estrutura administrativa japonesa, foi criada a Agência Nacional de Pessoal (NPA, na sigla utilizada no Japão), órgão independente responsável pela gestão e supervisão do sistema de serviço público. Mais especificamente, a NPA é responsável por assegurar a neutralidade e integridade dos servidores, e ao mesmo tempo defender os interesses dos funcionários públicos, que têm direitos trabalhistas e de mobilização bastante restritos.
2) Administração pública a serviço da sociedade
Na visão japonesa, para que o serviço público seja desempenhado em prol da sociedade, a neutralidade e integridade do sistema precisa ser preservada. Isso é feito no Japão por meio de diversos mecanismos.
Primeiramente, as contratações se dão, via de regra, através de concursos públicos organizados anualmente pela NPA, como forma a concretizar o princípio do tratamento igualitário (art. 27 da Lei da NPA). O sistema de avaliação e promoção é baseado no mérito (art. 33) e há garantia do status funcional e remuneratório do servidor, desde que cumprido estritamente o Código de Conduta. Ou seja, procedimentos que levem à mudança na condição do servidor, bem como punições disciplinares, devem estar previstos em lei (art.74).
Os servidores recebem constantemente treinamento para fortalecer o senso de ética e o senso de missão do serviço em prol da sociedade. Além disso, têm sua participação e atuação na política restringidas.
3) Papel desempenhado por políticos e a carreira dos servidores públicos
Ao mesmo tempo em que se restringe a atuação política dos servidores, também há limitação da presença de políticos na administração pública.
Os ministros gerem, dirigem e supervisionam as repartições administrativas sob sua jurisdição com base em orientações do Gabinete (que representa o Poder Executivo no Japão). Os funcionários públicos de carreira, por sua vez, sugerem políticas aos ministros, e executam as políticas definidas pelos Ministros com base na lei.
Para garantia dessa divisão de tarefas, a grande maioria dos cargos, incluídas aí posições de alto escalão como vice-ministro administrativo e diretor-geral, são preenchidos pelos funcionários de carreira, e não por nomeações políticas. As três posições ocupadas por indicação do governo são os cargo de ministro e vice-ministro, bem como secretário parlamentar.
Devido a essa divisão, a substituição nos cargos de alto escalão em mudanças de governo é muito menos comum no Japão do que em nações como os EUA, onde uma parte considerável do funcionalismo é composto por indicações políticas, e também bastante diferente do Brasil, onde abundam cargos comissionados.
Do ponto de vista organizacional, na esfera do governo central do Japão (equivalente ao âmbito federal no Brasil), toda a autoridade de gestão de pessoal nos mais altos escalões está concentrada no Gabinete, visando maximizar a utilização de recursos humanos em todos os Ministérios. Na prática, isso significa que a nomeação para os cargos ministeriais mais altos, ainda que não sejam feitas pelo campo político, deve passar por consulta com o primeiro-ministro e/ou com o secretário-chefe do Gabinete.
4) Contratação, promoção e carreira
A carreira do servidor público, que também tem estabilidade no Japão, começa no recrutamento por meio de uma série de concursos públicos simultâneos realizados uma vez por ano, voltado para recém-graduados das universidade e/ou ensino médio. Assim, não há contratação para vagas e cargos específicos, trata-se de um grande concurso genérico. Os ministérios “disputam” entre si os aprovados no concurso unificado.
A título de exemplo, em 2017, foram aproximadamente 22 mil aprovados nos 4 concursos públicos do governo central, dos quais quase 9 mil foram efetivamente convocados.
A promoção, por sua vez, é baseada em avaliação do desempenho e na experiência do funcionário em diversos departamentos, que decorre da constante transferência dos servidores para diferentes órgãos e cidades, exercendo uma ampla variedade de funções.
Trata-se de um dos aspectos mais peculiares do sistema japonês e simula o modelo que predomina no setor privado do país, no qual a esmagadora maioria dos contratos de trabalho permite a transferência do empregado, inclusive territorial, sem o consentimento do mesmo (basicamente o consentimento se dá na contratação, com a aceitação do contrato flexível).
Por outro lado, há, em menor escala, contratação de profissionais da iniciativa privada em nível intermediário ou carreiras técnicas específicas por meio de contratos de trabalho por tempo determinado, ou por meio de permuta de pessoal através de iniciativas de cooperação público-privada.
5) Remuneração
Tendo em vista a não submissão da administração pública às condições do mercado, a remuneração dos funcionários públicos é estabelecida com base na média do setor privado. Reajustes são negociados pela NPA após extensa pesquisa anual dos salários nas empresas, e reajustes e bônus são sugeridos com base na realidade dessas empresas (ou seja, em anos de crise, se os salários caem, é recomendada redução da remuneração dos servidores).
A título de exemplo, em 2017, foi recomendado aumento de 0,15% (média de 631 ienes, pouco mais de 12 reais), mas em 2009, 2010 e 2011, anos pós-crise financeira, foram recomendadas reduções na faixa de 0,2%. Hoje, a remuneração média dos funcionários públicos, incluídos todos os auxílios disponíveis, é de 416 mil ienes.
6) Desenvolvimento de recursos humanos
São duas as principais formas de treinamento dos funcionários públicos japoneses:
a) Treinamento “on-the-job” (OJT)
– Treinamento prático no exercício da função, através do acúmulo de experiência, supervisão e mentoria dos superiores em cada departamento, possível graças ao sistema de transferências constantes.
b) Treinamento “off-the-job” (Off-JT)
– Treinamentos interministeriais realizados pela NPA para cada nível hierárquico (da primeiro nível na escala até a Diretor-Geral de departamento)
O foco da combinação desses dois tipos de treinamento é ampliar a capacidade dos servidores e fortalecer o senso de ética e a consciência de que devem servir a sociedade como um todo.
7) Condições de Trabalho – Restrição de direitos trabalhistas fundamentais
Condições de trabalho, incluindo salário e horas trabalhadas, são determinadas com base nas Recomendações da NPA, e não em acordos coletivos entre governo e funcionários públicos, uma vez que têm seus direitos trabalhistas fundamentais restringidos devido à natureza pública de suas funções e à posição especial do funcionalismo em relação à sociedade.
No exercício dessa função de representante dos funcionários públicos, a atividade da NPA é pautada na busca de equilíbrio com relação às condições de trabalho no setor privado.
8) Recontratação de funcionários aposentados
Outra característica do funcionalismo público japonês é a aposentadoria compulsória e restrições impostas aos funcionários aposentados na recolocação no mercado.
Nesse âmbito, houve mudança na regulamentação a partir de 2008 com a reforma da Lei Nacional do Serviço Público.
Com a mudança, tornou-se explícita a proibição do ministério ao qual o funcionário pertence de solicitar que empresas disponibilizem vagas para recolocação dos servidores. Além disso, funcionários ainda na ativa não devem buscar recolocação em partes interessadas ou empresas relacionadas ao ministério.
Ex-servidores empregados em uma empresa com relações com o ministério não podem realizar lobby junto ao referido órgão público.
9) Conclusão
Em suma, existe no Japão uma infraestrutura social que sustenta o sistema de serviço público, qual seja, por um lado um sistema educacional que forme e forneça talentos para o poder público, e por outro lado recursos e uma estrutura de representação que garantam condições dignas de trabalho.
Em artigos futuros vamos explorar melhor cada uma das peculiaridades do serviço público no Japão.
** Texto escrito com base na experiência do autor na NPA desde 2017.
*** Publicado originalmente no Grupo de Estudos Jurídicos Brasil – Japão (https://burajiruhounokai.wordpress.com/2018/10/04/principais-caracteristicas-do-funcionalismo-publico-no-japao/)