* por Beatriz Pereira dos Santos, advogada e assessora sindical, mestranda em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário na UERJ

Há poucas semanas, entrei em um grupo de Facebook chamado “clientes que não tem razão”. Lá, diversos trabalhadores compartilham diariamente suas agruras inusitadas com todo tipo de cliente. São profissionais de diversas áreas, do balconista da loja de construção à veterinária, passando pelo atendente de call center, pela doceira e pelo fotógrafo. Os relatos misturam humor, desabafo e terapia coletiva. Em alguns casos, os relatos vêm acompanhados de provas, como a conversa no whatsapp com o cliente. Algumas temáticas são recorrentes, como os clientes que combinam um valor e um prazo de pagamento e “enrolam” na hora de pagar. Usam o serviço ou comem o bolo ou brigam para religar a internet… mesmo sem ter pago a fatura: “semana que vem eu te pago sem falta”, “dia 15, quando eu receber, eu te pago”. Dia 15 vira dia 20, vira mês que vem, vira calote e vira desabafo no grupo.
***
Em novembro de 2017, Jonas [1] fazia parte dos 12,7 milhões de pessoas desocupadas no país [2]. No finalzinho do mês, ele conseguiu um emprego em uma grande rede de lojas. Um alívio para um pai de três filhos. Foi à empresa assinar toda a papelada, o Código de Ética da empresa, o termo de opção pelo vale transporte e pelo ticket alimentação, fez o exame admissional. A dona Selma do RH preparou a ficha funcional como fazia há anos para todos os funcionários, providenciou a assinatura na carteira com a função “vendedor” e anotou no campo destinado ao salário “R$ 6,75”. Na hora de assinar o contrato, lá estava escrito “contrato intermitente”. Na frente tinha um papel escrito “contrato de experiência”, com a explicação que o pessoal contratado como intermitente não precisava assinar. Sobre suas funções, dona Selma explicou a ele que eram as funções do sistema de atendimento padrão da rede, composto das tarefas normais do vendedor: recepcionar o cliente na loja, fixar cartazes, fazer a conferência dos produtos e o balanço do estoque, efetuar procedimentos de entrega de produtos adquiridos pelo site, demonstrar e oferecer produtos, auxiliar e realizar vendas, dentre outras devidamente registradas em contrato.
Inquieto para saber quando começava, perguntou, mas não sabiam lhe responder. Quando precisassem, chamavam. O Natal já era mês que vem, talvez precisassem, talvez não. Que ficasse atento ao celular. Já era dia 19 e, para Jonas, o que era certo eram os boletos de aluguel, luz e gás que deveriam ser pagos pontualmente no dia 05. Só a multa do aluguel era de 10% se passasse um dia do vencimento. Passou dezembro e nada de ser chamado. Só foi chamado no iniciozinho de janeiro, logo após o réveillon. Trabalhou três dias. Perguntou se iam chamar de novo, mas não sabiam não. Recebeu, junto com o salário referente aos três dias que trabalhou, o décimo terceiro e as férias proporcionais. Em fevereiro o chamaram, mas era porque devia comparecer para assinar a rescisão, após 88 dias de duração do contrato. Foi e, na volta, procurou um advogado para ajuizar uma ação contra a empresa.
***
Duas coisas o algoritmo já sabe que eu leio: relatos do grupo dos clientes que não tem razão e notícias do mundo do Direito e das relações do trabalho. Eis que semana passada, na mesma rede social, despontaram notícias sobre a decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) reconhecendo a validade do contrato intermitente. Uma reclamação trabalhista simples, individual, movida por um trabalhador contra uma grande rede de lojas em Minas Gerais. O pleito, simples, anular o contrato intermitente e receber as verbas a que teria direito na rescisão de um contrato por tempo indeterminado normal.
O contrato intermitente é uma das possibilidades colocadas pela Reforma Trabalhista no grande cardápio de opções aos empregadores para manejar a força de trabalho de acordo com as suas necessidades [3]. Neste tipo de contrato, não há especificação dos dias ou horários a serem trabalhados. O trabalhador é convocado e deve responder se pode comparecer.
Não há, portanto, garantia de recebimento do salário mínimo mensal, nem garantia de trabalho por um mínimo de horas, seja por mês, seja por dia. É possível chegar ao trabalho, após meses esperando, como nosso personagem Jonas, e ser dispensado do serviço após duas ou três horas de trabalho. A definição de sua jornada e da programação de sua vida fica a critério do empregador, de acordo com sua demanda, transferindo ao trabalhador, indevidamente, os riscos do negócio.
A cada mês devem ser pagos o décimo terceiro salário e as férias proporcionais (de acordo com o art. 452-A, §§6º e 8º da CLT). Ao primeiro olhar, o pagamento desses direitos parece trazer maior proteção ao trabalhador. Mas, ao receber estas parcelas proporcionalmente mês a mês, o trabalhador nada terá a receber ao final do ano ou quando puder fruir suas férias [4].
Além disso, os Tribunais parecem ter memória curta quando examinam algumas novidades trazidas pela Reforma Trabalhista. Várias delas são um remake de práticas anteriores que eram enquadradas como violação ao artigo 9º da CLT (atos nulos de pleno direito porque praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na CLT). A professora Patrícia Maeda [4] recorda que, antes da Reforma, os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e o TST apreciavam de forma muito distinta a contratação sob jornada móvel variável.
Em agosto de 2014, o TST concluiu sobre a jornada móvel variável que “com o regime mantido pela empresa, havia flutuação dos valores auferidos pela Reclamante que, a cada mês, ao arbítrio da empregadora, submetia-se a uma duração de trabalho a ser comunicada com a antecedência de dez dias antes do início de cada semana, o que afetava o valor de seu salário”. Naquele julgado [5], registrou-se que a prática violava a diretriz da Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra a mercantilização do trabalho e afetaria, ainda, a garantia contra irredutibilidade salarial e princípios inscritos na Constituição Federal de 1988 – a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho e do emprego, a justiça social e a subordinação da propriedade à sua função social [6]. Não bastassem, a prática da empresa contrariava “o modelo normativo geral, que se aplica ao conjunto do mercado de trabalho, de 08 horas de trabalho diárias e 44 semanais (art. 7º, XIII, da CF), que não pode ser flexibilizado em prejuízo do empregado”.
Neste mesmo sentido, o TRT da 15ª Região já concluíra, anos antes, que o modelo contratual da jornada móvel variável desprezava princípios constitucionais “da existência digna e conforme os ditames da justiça social, impondo a predominância de interesses puramente econômicos, em detrimento dos valores humanísticos e sociais”. Antes que se diga que, naquela época, não existia previsão legal, neste julgado se argumenta que “a despeito de a lei permitir ao empregador contratar trabalhador mediante salário-hora, é indispensável que a jornada a ser cumprida seja previamente estabelecida, tendo dela ciência o empregado, a quem deve ser informado não só o horário de trabalho, mas o salário mensal a ser auferido, não podendo ser desprezadas as suas necessidades pessoais, sociais e familiares”[7].
É neste ponto que voltamos ao início. Se não há previsibilidade, estimativa de ganhos, um mínimo de planejamento e segurança, como pode o trabalhador organizar seus gastos mensais, suas contas, o pagamento de seu aluguel? Se não sabe quando trabalhará ou qual será seu horário, como poderá se inscrever em cursos de qualificação, ou como pensará quais gastos pode ou não fazer? Como fazer financiamentos no banco? Ou mais precisamente: como pagar pontualmente seus credores, para não ser enquadrado como um cliente sem razão que achava que ia ter dinheiro para pagar na data aprazada, mas não recebeu para pagar?
A justificativa apresentada pelo patronato é que esses contratos poderiam beneficiar os trabalhadores que trabalham e estudam, além de servir às empresas que precisam de mais flexibilidade, pois alguns setores têm demandas pontuais e extraordinárias de incremento no serviço. Na mesa de negociação com grandes redes de comércio, tal como a empresa que integrava a lide objeto do recente julgamento do TST, é comum ouvir quais são as datas em que o comércio se movimenta mais: Natal, Dia das Mães, dos Pais, dos Namorados, das Crianças. A necessidade no serviço é sazonal, submetida a alguma variação, mas também previsível porque se repete ano após ano. Apesar de estar sob a justificativa de que certos setores têm especificidades de necessidades imprevisíveis, a Reforma permitiu o contrato intermitente sem especificar quais seriam estes setores. Além disso, as empresas e os empregados que tivessem necessidade de jornadas flexíveis já podiam, antes da Reforma, lançar mão de uma série de modalidades de contratação alternativa ao vínculo de emprego tradicional: o contrato por tempo parcial, o contrato por tempo determinado e o contrato de experiência, por exemplo, já garantiam opções neste sentido.
A Reforma Trabalhista exige certeza dos trabalhadores que desejam acionar a Justiça do Trabalho: seus pedidos devem ser precisos, sob pena de arcarem com os honorários do advogado da empresa e as custas processuais, e devem apontar de forma objetiva os valores que pretendem receber. A mesma Reforma trouxe o contrato intermitente, em que o trabalhador não sabe quais sãos seus dias e horários de trabalho, nem consegue prever sua remuneração mensal com segurança.
No caso do recente julgamento do TST, em que foi reconhecida a licitude da contratação intermitente, o Tribunal Regional de Minas Gerais havia entendido que a empresa estava fazendo uso deste contrato não para uma necessidade pontual ou extraordinária de pessoal (a justificativa colocada para a necessidade deste tipo de contrato), mas sim como substituição de pessoal, eis que as funções eram as mesmas do funcionário típico daquela rede e, assim, invalidou a contratação do trabalhador intermitente para as funções regulares da loja. A empregadora recorreu ao TST.
Cinco anos e um dia após a decisão contrária à jornada móvel variável, por desrespeito a uma longa lista de princípios constitucionais, o TST acolheu desta vez a legalidade do contrato intermitente, sob o argumento de que “trata-se de uma das novas modalidades contratuais existentes no mundo, flexibilizando a forma de contratação e remuneração, de modo a combater o desemprego. Não gera precarização, mas segurança jurídica a trabalhadores e empregadores, com regras claras, que estimulam a criação de novos postos de trabalho” [8]. Ainda cabe recurso desta decisão. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 6154, que trata do contrato intermitente, foi ajuizada em junho de 2019 e ganhou tramitação mais célere sob o rito do art. 12 da Lei 9868/99, mas ainda aguarda julgamento.
O argumento da criação de empregos e a preocupação com a retomada do crescimento normalmente são trazidos como fundamento das alterações empreendidas pelas reformas trabalhista e da previdência. No entanto, em outubro de 2017 havia 12,7 milhões de desocupados no país [2], número que subiu para 12,8 milhões ao fim do segundo trimestre de 2018 [9], quando estamos prestes a completar dois anos de vigência da Reforma. Ao mesmo tempo, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) aponta para um preocupante crescimento da subocupação: “Entre o terceiro e o quarto trimestres de 2018, quase 5 milhões de trabalhadores tiveram as jornadas de trabalho reduzidas para menos de 30 horas semanais. Entre eles, 1,3 milhão ficaram insatisfeitos com essa mudança e declararam que gostariam de trabalhar mais horas” [10]. Neste estudo, o DIEESE sinaliza que a subocupação cresceu 66% desde 2015, é mais frequente entre os menos escolarizados, é maior entre as mulheres e os negros, entre os que trabalham por conta própria ou com contratos parciais formais. E apenas 15% contribuem para a Previdência.
Em nome da segurança jurídica, entendeu-se lícita uma forma de contratação que cristaliza a incerteza: não se sabe quanto ganhará, quanto trabalhará, e este modelo não está atuando para criar empregos que deem conta da demanda dos trabalhadores brasileiros. O trabalhador é colocado, nesta relação, como mais um item no estoque, mais uma ferramenta ou engrenagem, da qual o empregador pode lançar mão ao seu bel prazer, ficando sujeito às incertezas de um negócio em cuja gestão o trabalhador não tem qualquer possibilidade de influência. Sua força de trabalho é, portanto, hipermercantilizada, tratada como peça descartável, em franca contraposição à Declaração de Filadélfia da Organização Internacional do Trabalho, segundo a qual o trabalho não é mercadoria.
Alguns dizem que o contrato intermitente é legalização do “bico” [11] – e o TST parece concordar e fazer uma leitura positiva desta informação – embora estudiosos do trabalho apontem que a tendência deste tipo de contrato seja atuar como vetor de instabilidade, do rebaixamento da remuneração do trabalhador e intensificação do trabalho, ou seja, aumento da carga de trabalho e redução das horas pagas [12]. O Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da UNICAMP interpreta o contrato intermitente como a criação do trabalhador just in time em sintonia com as alterações no modo de produção que se dão conforme a demanda e, assim estão sujeitos a oscilações. Aponta, ainda, que pesquisas em outros países onde vigoram contratos semelhantes demonstram que estes empregados trabalham muito mais ou muito menos que um trabalhador regularmente contratado e, assim, têm suas vidas reguladas de acordo com as demandas de curto prazo das empresas, ficando à mercê dos empregadores e aceitando qualquer trabalho que aparecer. Atende, portanto, às necessidades e ao planejamento da empresa, mas não atende às necessidades e ao planejamento do empregado, conformando um contrato profundamente desigual e que não dá conta da estabilidade financeira que é almejada para viabilizar o crescimento econômico e a diminuição da inadimplência.
[1] Caso elaborado a partir de dados de processos judiciais e alterados os nomes para proteger a identidade das partes.
[3] KREIN, José Dari. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento da ação coletiva. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 1., 2018.
[4] MAEDA, Patrícia. Contrato de Trabalho Intermitente. In: Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
[5] Processo nº 0000762-72.2010.5.02.0070. Acórdão publicado em 08/08/2014, de relatoria do Ministro Maurício Godinho Delgado na 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho. Disponível no link: http://twixar.me/Cq91.
[6] Irredutibilidade salarial (art. 7º VI da CF/88). Dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, e 170, caput). Valorização do trabalho e emprego (arts. 1º, IV, e 170, caput e VIII). Justiça social (art. 3º, I, II, III e IV, e 170, caput) e subordinação da propriedade à sua função social (art. 170, III).
[7] Processo nº 0180500-71.2007.5.15.0067. Acórdão publicado em 30/04/2009, de relatoria da Desembargadora Mariana Khayat na 1ª Turma da 2ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Disponível no link: http://twixar.me/fr91
[8] Processo nº 0010454-06.2018.5.03.0097. Acórdão publicado em 09/08/2019, de relatoria do Ministro Ives Gandra Martins Filho na 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho. Disponível no link: http://twixar.me/nr91.
[10] Boletim Emprego em Pauta do DIEESE. https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2019/boletimEmpregoEmPauta12.html
[11] “Bico” é uma expressão popular para trabalhos de curta duração e pontuais, sem registro.
[12] TEIXEIRA, Marilane Oliveira et al (orgs). Contribuição crítica à reforma trabalhista. Campinas: UNICAMP/IE/CESIT, 2017, p. 66.