João Pedro Barretto*

Neste artigo, analisaremos se o movimento grevista dos garis, ocorrido em 2014, poderia se enquadrar nos denominados movimentos de desobediência civil.
Os garis aproveitaram o evento da copa do mundo para reivindicar direitos humanos e, acima de tudo, sociais, principalmente trabalhistas. Ao longo da pesquisa, foi visto como foram traçados os diálogos dos atores que compuseram os ciclos históricos dos movimentos de trabalhadores no Brasil, com uma reflexão sobre a influência do sindicalismo e, se a experiência poderia ser considerada um marco de revitalização da ação sindical, “problematizando seu entrecruzamento com as ações de cunho societal”[1]
O movimento grevista dos garis cariocas em 2014 foi organizado por profissionais responsáveis pela atividade de limpeza da cidade, inseridos na categoria profissional dos trabalhadores em Asseio e Conservação do Município do Rio de Janeiro, inconformados com a situação sob a qual seu trabalho era desempenhado. [2]
Tais garis são representados pelo Sindicato dos Empregados de Empresas de Asseio e Conservação do Município do Rio de Janeiro, que, em sua composição, une todos os trabalhadores do ramo de limpeza de empresas tanto públicas como privadas. Essa atividade econômica conta com índices muito altos de terceirização. A atividade de limpeza urbana na cidade do Rio de Janeiro é desempenhada pela Companhia de Limpeza Urbana – COMLURB, empresa pública que sobrevive com orçamentos advindos da gestão do Poder Executivo do Município do Rio de Janeiro. Tal empresa apresenta o terceiro maior orçamento da cidade do Rio de Janeiro. O ingresso nessa instituição é feito a partir de concurso público. [3]
Acresce-se a isso a característica de a Comlurb ter um quadro majoritariamente composto por negros, sobre o qual paira estigma e segregação, não sendo raro trabalhadores referindo-se à sede da COMLURB como “casarão” e “casa grande” em que os negros ocupavam apenas posições subalternas. Frequentemente, referiam-se aos superiores como “capatazes” e “capitães do mato”.[4] Ademais, devido a esse quadro sindical, tentativas de rupturas foram exploradas, porém infrutíferas.[5]
Segundo relato de uma gari, “queríamos melhores condições de trabalho, melhor tratamento, dignidade dentro da empresa”[6]. Em matéria sobre a paralização, o jornal “Sul 21” expõe a fala de um dos garis entrevistados: “Os gerentes não respeitam ninguém. É assédio o tempo todo, ameaças. A gente não tem luva. Protetor solar, neste sol, eles não dão. A nossa gerência não tem água. A gente tem que beber água da bica. Quando a gente pede água a eles, eles mandam a gente comprar”.[7]
O estopim para a mobilização, segundo relata um dos trabalhadores, foi uma fala realizada pelo prefeito, alegando que os grevistas seriam “300 desordeiros”. “Que sejamos 300 espartanos”, expõe o mesmo trabalhador em entrevista.[8]
Passando-se à análise da greve em si, no dia 31 de janeiro de 2014, houve assembleia da categoria para discutir sobre a pauta de reivindicações e, no mês seguinte, “o sindicato encaminhou a pauta deliberada em assembleia à Companhia Municipal de Limpeza Urbana, dando início às negociações.”[9]
A empresa não concordou com qualquer dos pontos da pauta e, em 28 de fevereiro de 2014, começo de carnaval, o sindicato “enviou comunicação à COMLURB, notificando a empresa sobre a convocação de greve de 24 horas a ser realizada no dia 1º de março daquele ano, a partir da meia noite.”[10]
No mesmo dia, o mesmo sindicato enviou nova comunicação, suspendendo a greve que seria decretada, com a convocação de reunião da categoria para definir os rumos da mobilização. [11] Isso era a tentativa do sindicato se manter na legalidade no âmbito da deflagração da greve. Segundo Verônica Triani:
“Tais fatos foram suficientes para inflamar a categoria no âmbito de uma negociação que, no ano de 2014, já era dotada de particularidades. Como demonstrado na página XX nos dados levantados por meio de vídeos, desde o dia 06 de fevereiro de 2014, principalmente através de convocações pelo Facebook, os empregados da COMLURB se encontravam mobilizados, realizando o primeiro ato de protesto naquela data, após realização de reunião aberta na Central do Brasil. Naquela ocasião, os trabalhadores já bradavam palavras de ordem sobre o estado de revolta da categoria, enviando mensagem direta ao Poder Executivo, indicando a deflagração de greve no carnaval, caso sua pauta não fosse atendida na data-base (01 de março de 2014). O mesmo ato já denotava a ausência de confiança dos trabalhadores na entidade sindical.”[ 12]
Quando da realização da deliberação pela deflagração do movimento paredista, um dissídio coletivo de greve foi instaurado perante o Tribunal Regional do Trabalho (TRT/RJ) e culminou em “imediata concessão de decisão liminar determinando imediata suspensão da greve e retorno dos empregados ao trabalho, sob pena de aplicação de uma multa diária de vinte e cinco mil reais.”[13]
A decisão judicial foi ignorada pelos trabalhadores e em 03 de março de 2014 foi realizada nova rodada de negociações na sede da Prefeitura do Rio de Janeiro, porém sem êxito. Independentemente do resultado da votação, foi assinado Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) pelo sindicato com a COMLURB, ficando pactuado o reajuste salarial de 9%, nos termos propostos.[14]
Contudo, não concordando com esse desfecho, a greve foi mantida pelos trabalhadores à revelia do sindicato [15], sendo convocadas reuniões em locais públicos e passeatas, usando as mídias sociais. Os protestos em forma de blocos de carnaval foram um bom exemplo disso.[16]
Depois de aguerrida luta dos trabalhadores, o movimento que se formou sem o aval sindical “teve sua representatividade e legitimidade institucionalmente reconhecidas, passando a comissão eleita pelos trabalhadores a integrar as reuniões de negociação coletiva.” [17].
O desfecho da greve foi a assinatura de um Termo Aditivo ao ACT 2014/2015 anteriormente assinado, prevendo reajuste salarial de 37%, seguido de aumento do tíquete alimentação em 66% e de adicional de insalubridade de 40%, comprometendo-se a COMLURB com a reversão das demissões dos trabalhadores Que participaram das manifestações. [18]
Embora tal compromisso tenha sido firmado, “houve denúncias de que entre duzentos e quatrocentos empregados teriam sido demitidos, quase na integralidade trabalhadores mobilizados no processo de negociação do dissídio daquele ano.”[19] No ano de 2015, houve tentativa de deflagração de nova greve, com início no dia 13 de março, que durou apenas até 20 de março daquele mesmo ano.[ 20]
Após essa exposição, passa-se à análise se tal paralisação teve as características que compõem os movimentos de desobediência civil. Importante somente fazer uma advertência: Muito por conta da fluidez do conceito de direito de resistência, o conceito de desobediência civil também carece de unanimidade.
Isso porque, muitos autores entendem que a desobediêncial civil é uma espécie do gênero direito de resistência (Maria Garcia[21], Norberto Bobbio[22], Joana de Menezes Araújo da Cruz[23], Nelson Nery Costa[24], Belizário Meira Neto[25],Isaac Rodrigues Cunha[26], Douglas Cesar Lucas[ 27], Márcio Túlio Viana[ 28],Helio Antonio Ardenghi[ 29], etc) e quem segue tal linha de raciocínio tende a dividir o direito de resistência em várias espécies, as mais comuns sendo desobediência civil, objeção de consciência e a revolução. Porém, também não há unanimidade nas espécies de resistência, cada autor exporá sua visão.
Também há aqueles autores que entendem que a desobediência civil seria um gênero diferente do direito de resistência, expondo tal diferença em seus escritos ( Maria de Assunção Andrade Esteves[ 30], Roberto Gargarella[ 31], José Gomes Canotilho[ 32], Maria Fernanda Salcedo Repolês[ 33], etc.). Foi encontrado na pesquisa autores que usam esses conceitos também como completos sinônimos (Marina Basso Lacerda[ 34],etc)
Vê-se, portanto, que tal conceito está em constante debate e não se pode afirmar que há um conceito unânime de desobediência civil. Porém, há certas características que comumente se atribuem ao ato de desobediência civil e serão elas vistas abaixo como forma de determinaçao do objeto de estudo e análise da situação concreta apresentada acima. Para isso, tomaremos as explicações de Nelson Nery Costa sobre os atributos os quais a desobediência civil deve possuir para ser caracterizada como tal.
Segundo Nelson Nery deve-se analisar, a saber: i) o número de participantes; ii) ser um ato público; iii) ser um ato político; iv) ser o último recurso; v) ser não-violento; vi) estar sujeito às sanções institucionalizadas; e vii) ser um ato ilícito.[ 35]
A desobediência civil é um ato normalmente coletivo[ 36], sendo as manifestações individuais postas em outra categoria. Houve uma ação coletiva por parte dos grevistas ao reinvidicar melhores condições de trabalho, portanto, a mobilização foi claramente coletiva.
Seguindo, Nelson Nery embasa sua tese de que a desobediência civil é um ato político sobretudo visitando a doutrina de Jonh Rawls. Para este autor a desobediência civil é um ato político porque “não só no sentido em que se dirige à maioria, que detém o poder político, mas também por ser um ato guiado e justificado por princípios políticos, isto é, pelos princípios de justiça que regulam a constituição e as instituições em geral”.[ 37]
Patente é, segundo a fala de inúmeros garis, a luta feroz pela sua dignidade humana e pela sua não segregação enquanto indivíduos de uma sociedade. Sendo esses princípios de justiça que regulam não só nossa constituição, como qualquer Estado Democrático de Direito, a greve dos garis se amolda ao requisito de ato político.
A desobediência civil se localiza no limite da cidadania, sendo último recurso, devendo-se, em caráter antecedente, serem utilizadas as medidas legais institucionalizadas para a resolução do conflito posto na realidade fática. Claras e infrutíferas se mostraram as tentativas de saída pelos meios legais, sendo as demandas dos grevistas não atendidas pelo próprio sindicato e sem negociações coletivas que atendessem aos anseios dessa categoria. Por isso, a greve foi feita à margem do sindicato, fato que também comprova seu caráter ilícito.
Ademais, por conta das manifestações de rua que até atraíram foliões na época do Carnaval, esse protesto pode ser considerado como público, pois a desobediência civil é um ato público e aberto. Além disso, não foram localizadas na pesquisa ações consideradas violentas pelos manifestantes grevistas em seus atos, podendo-se afirmar que o movimento foi de índole pacífica. Em verdade, segundo Verônica Triani, até a atuação das forças policiais militares não foi tão hostil como costuma ser nas manifestações de rua, embora reconheça certa repressão ao movimento por parte de atuação de seguranças privados contratados pela companhia:
“Embora seja comum a ocorrência de repressão policial às manifestações, principalmente quando há obstrução das principais vias da cidade, manifestantes relatam que os policiais, na maioria do tempo, apresentavam, postura pacífica, sem interesse em intervir. Narram que chegavam a aconselhá-los sobre a postura nos atos para evitar intervenção policial e tecer elogios: “melhor manifestação, porque é só acompanhar”. Um gari relata que procuravam “não deixar Black Block”. O portal de mídias colaborativas “Sul21” relata que policiais chegavam a sugerir ângulos aos fotógrafos (…) As próprias denúncias sobre a repressão durante os dias de greve envolvem a atuação de seguranças privados contratados pela companhia como é possível ver na figura 5 abaixo e, pontualmente, a atuação da Guarda Municipal, mas não de repressão ostensiva por parte da Polícia Militar carioca.”[ 38]
Por derradeiro, uma vez que os grevistas queriam unicamente melhores condições de emprego, é seguro dizer que o caráter do movimento não foi revolucionário, mas apenas queria alterar a estrutura das regulações da própria categoria. Não lutavam contra o sistema em si, característica de uma revolução, mas apenas mudar algumas diretrizes desse sistema, relacionadas à sua própria categoria de trabalho. Portanto, não negando o sistema institucionalizado e, por conseguinte, suas sanções à práticas ilegais.
Logo, segundo a doutrina a qual este artigo se filia sem reservas, é correta a caracterização da greve dos garis de 2014 como um movimento de desobediência civil que visou garantir melhores condições de trabalho para a categoria e maior reconhecimento perante a sociedade carioca. Como dito anteriormente, um dos trabalhadores em greve expôs que o estopim foi uma declaração do prefeito dizendo serem apenas “300 desordeiros”. Porém, esses “desordeiros” se mostraram verdadeiros “espartanos”, como bem preconizou o trabalhador entrevistado.
REFERÊNCIAS:
*Aluno do 10º Período da Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
[1] TRIANI, Verônica de Araujo Garis Cariocas em Movimento: Toneladas de Lixo que Alaranjaram o Direito, pp.07.
[2] Ibdem, pp.26.
[3] Ibdem,pp. 26-27.
[4] Ibdem, pp.28-31.
[5] Ibdem, pp. 27-28.
[6]Ibdem,pp.36.
[7] Ibdem ,pp.36.
[8] Ibdem ,pp.51.
[9] Ibdem, pp. 34.
[10] Ibdem, pp.34.
[11] Ibdem, pp. 34.
[ 12] Ibdem,pp.35
[13] Ibdem, pp. 56.
[14] Ibdem,pp. 57.
[ 15]Matéria do jornal “Forum” à época: https://revistaforum.com.br/noticias/sem-apoio-sindicato-garis-rio-continuam-em-greve/
[ 16] TRIANI, Verônica de Araujo Garis Cariocas em Movimento: Toneladas de Lixo que Alaranjaram o Direito,pp.48.
[17] Ibdem, pp.60.
[18] Ibdem, pp. 62.
[19] Ibdem, pp. 65.
[ 20] Para saber mais sobre a greve, ler também: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/entenda-o-impasse-entre-garis-em-greve-e-prefeitura-do-rio.html https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/03/140304_greve_garis_jc_lk https://www.conjur.com.br/2014-mar-18/jose-carlos-baboin-greve-garis-rj-foi-passo-importante-democracia
[ 21] GARCIA, Maria. Desobediência Civil. Direito Fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 257.
[ 22] BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 8. ed. v. 1. Brasília: Universidade de Brasilia, 1995, p. 336-338.
[ 23] CRUZ, Joana de Menezes Araújo de. Desobediência Civil nos interstícios do Estado de Direito 1ª ed. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2017, p.62.
[ 24] COSTA, Nelson Nery Teoria e Realidade da Desobediência Civil 2ª Edição (Revista e Ampliada) Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000, p.48.
[ 25] NETO, Belizário Meira Direito de Resistência e o Direito de Acesso à Terra Editora Impetus, Rio de Janeiro, 2003, p.30.
[ 26] CUNHA, Isaac Rodrigues Resistência Fiscal e Desobediência Tributária: Por um Direito de não pagar tributo injusto Monografia apresentada ao Curso de Graduação de Direito da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014, p.78.
[ 27] LUCAS, Douglas Cesar Direito de Resistência e Desobediência Civil História e Justificativas Revista Direito Em Debate v.8 nº13, 2013, p.23-53. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/807> Acessado em: 01/06/2020.
[ 28] VIANA, Márcio Túlio Direito de Resistência: Possibilidades de autodefesa do empregado em face do empregador Editora LTr., São Paulo, 1996, p. 54.
[ 29] ARDENGHI, Helio Antonio Desobediência Civil: Um Estudo da Resistência como Ato ao Direito de Cidadania Dissertação apresentada ao curso de pós-grauação de Direito da Universidade Federal de Santa catarina, Florianópolis, 2001, p. 61.
[ 30] GUARESCHI, Carla Varea O papel da desobediencia civil na construção democrática do direito. O Exemplo do Movimento Ocupe Estelita. Ocupar e Resistir! Dissertação de Mestrado apresentada ao Gabinete de Estudos Pós- Graduados da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017, p. 14-16.
[ 31] GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta: El primer derecho. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2007, p. 211).
[ 32] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 328 e 512.
[ 33] GUARESCHI, Carla Varea, Op. Cit., p.14-16.
[ 34] LACERDA, Marina Basso O direito de resistência e a resistência do Direito: problematizando conflitos entre as ocupações de terra e os espaços jurídicos no Brasil contemporâneo. Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do curso de Direito, pelo Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p.14.
[ 35] NERY,Nelson Teoria e Realidade da Desobediência Civil, 2ª edição, Editora Forense, pp.49/68.
[ 36] Ibdem , pp.50.
[ 37] Ibdem, pp.53.
[ 38] TRIANI, Verônica de Araujo Garis Cariocas em Movimento: Toneladas de Lixo que Alaranjaram o Direito,pp.54/55.