Religião, individualidades e acesso a emprego: o caso EEOC v. Abercrombie & Fitch

*por João Renda Leal Fernandes

A legislação norte-americana (Título VII do Civil Rights Act) proíbe, como regra geral, a discriminação em virtude de religião, inclusive no momento da contratação para um posto de trabalho.

Os EUA possuem também uma agência federal especializada em receber e apurar denúncias de discriminação no emprego, com poderes inclusive para determinar a reintegração de empregados e o pagamento retroativo de salários. Trata-se da Comissão de Oportunidades Iguais de Empregos (EEOC), órgão bastante estruturado e desenvolvido, que conta com sede na capital Washington e 53 escritórios regionais espalhados por todo o país. A EEOC pode judicializar casos em favor de trabalhadores.

No ano de 2009, a EEOC ajuizou na Justiça Federal norte-americana ação em face da famosa marca de roupas Abercrombie & Fitch, que no ano anterior havia se recusado a contratar Samantha Elauf (então com 17 anos) para uma loja de roupas infantis. A recusa foi motivada simplesmente pelo fato de a garota usar véu (‘hijab’) típico da religião islâmica.

Em sua defesa, a empresa afirmou possuir um código de vestimenta com proibição ao uso de adereços sobre a cabeça (bonés, chapéus, véus etc). Alegou, ainda, que a recusa em admitir Samantha não estaria relacionada a qualquer aspecto religioso.

Na Corte Distrital, perante o júri, Samantha se declarou apaixonada por cinema, compras, sushi e shopping centers, os quais seriam sua “segunda casa”. Disse também que o resultado do processo seletivo a havia abalado emocionalmente, pois se sentiu desrespeitada em virtude de sua fé. Em 2011, o júri condenou a empresa a pagar indenização de US$20.000,00 (valor equivalente a R$75.000,00) em favor da trabalhadora. No entanto, após recurso, a Corte de Apelações do 10º Circuito entendeu que a ação sequer deveria ter sido levada a júri, pois a trabalhadora não tinha informado expressamente à empresa o fato de que o véu (‘hijab’) era usado por motivo religioso a justificar que a prática recebesse uma “acomodação razoável”, conforme garantido pela legislação norte-americana.

Em 2015, o caso chegou à Suprema Corte dos EUA, onde, por 8 votos a 1, reverteu-se o julgamento da Corte de Apelações, entendendo-se que a ação merecia ter seu mérito apreciado. No voto majoritário, o conservador Ministro Antonin Scalia afirmou que, numa ação daquele tipo, não era necessário que a trabalhadora tivesse expressamente solicitado ao empregador uma “acomodação razoável” para sua prática religiosa. Ressaltou, ademais, que “um empregador não pode utilizar as práticas religiosas de um candidato como fator determinante nas decisões de emprego”. Na mesma linha, o Ministro Samuel Alito afirmou estar claro o fato de que a Abercrombie sabia que Samantha era muçulmana e usava o véu por uma razão religiosa. O único voto dissidente foi do Ministro Clarence Thomas, para quem o código de vestimenta da empresa era neutro e não tinha qualquer intenção discriminatória.

O processo foi remetido novamente para apreciação do recurso pendente no 10º Circuito, mas a Abercrombie desistiu da apelação e pagou à trabalhadora indenização no valor de US$25.670,00 (equivalente a R$96.262,50), custas judiciais no montante de US$18.983,75 (R$71.189,06), além das despesas com advogado.

Na ocasião, Samantha desabafou: “eu era uma adolescente que amava a moda e estava ansiosa para trabalhar na Abercrombie & Fitch. Seguir minha fé não deveria ter me impedido de conseguir um emprego. Fico feliz por ter defendido meus direitos e feliz porque a EEOC estava lá para me ajudar e levou minha reclamação até a Justiça”.

A porta-voz da Abercrombie declarou que, após 2008, a empresa alterou seu código de vestimenta, com maior respeito às individualidades de cada empregado. Acrescentou que a empresa “tem um longo compromisso com a diversidade e inclusão” e que, quando solicitada, “concedeu numerosas acomodações religiosas, incluindo hijabs”. A empresa também substituiu a denominação usada para designar seus vendedores, antes referidos como “modelos” e agora chamados de “representantes da marca”.

Para quem tiver maior curiosidade sobre o caso, recomendo os seguintes vídeos e leituras:

https://www.youtube.com/watch?v=lhePN3HMHxI (Wall Street Journal)

https://www.youtube.com/watch?v=abgiMSz8b9M (The Federalist Society)

https://www.nytimes.com/2015/06/02/us/supreme-court-rules-in-samantha-elauf-abercrombie-fitch-case.html (New York Times)

https://www.eeoc.gov/eeoc/newsroom/release/7-28-15.cfm (EEOC News)

https://www.oyez.org/cases/2014/14-86 (Oyez – o julgamento na Suprema Corte)

Autor: João Renda Leal Fernandes

Mestre e Doutorando em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário no PPGD UERJ, Visiting Researcher na Harvard Law School (2019-2020), ex-bolsista da Japan Student Services Organization na Tokyo University of Foreign Studies, Juiz do Trabalho no TRT/RJ.

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