* por Carolina Monteiro de Castro Silveira, advogada, mestranda em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário na UERJ, ex-bolsista Top China Santander na Peking University (publicado em 04.05.2019)

O número “996” remete à jornada de trabalho que se inicia às 9h da manhã e termina às 9h da noite, durante 6 dias por semana.
O termo 996 workers (“trabalhadores 996”) ganhou recentemente a atenção da mídia internacional após a criação de um site denominado 996.ICU, criado para protestar contra a jornada excessiva de trabalhadores chineses na indústria da tecnologia. O nome do site faz referência à já mencionada jornada “996” e ao termo “ICU” (Intensive Care Unity), que, traduzido para o português, significa UTI (Unidade de Terapia Intensiva), com o claro objetivo de alertar para os graves problemas de saúde ocasionados pela cultura de trabalho em excesso. A própria imagem do site mostra uma pessoa doente, acamada, prestes a ser atingida por uma máquina, que representaria a indústria.
O site foi criado através do GitHub, que é uma rede social muito utilizada por programadores e desenvolvedores de códigos, além de ser uma plataforma que prega a colaboração das pessoas para criação de projetos que podem ser utilizados por todos de forma gratuita. Trata-se de um ambiente online em que profissionais da área de TI se reúnem diariamente para colaborar uns com os outros, auxiliando em projetos, dúvidas, problemas com softwares, ou até mesmo para editar em conjunto um mesmo projeto. Aliás, para os experts no setor, a plataforma também é um bom meio para ampliar a rede de contatos e buscar trabalho.
Um dos recursos disponíveis na plataforma é a possibilidade de acrescentar uma estrela a um projeto específico (relacioná-lo como uma espécie de favorito). Quanto mais estrelas o projeto receber, mais popular ele será e, consequentemente, restará mais visível ao público. Acredita-se que o 996.ICU seja o projeto com mais estrelas do GitHub hoje, contando com 240 mil estrelas, atrás do JavaScript React (a forma mais popular de construir interfaces de usuário para aplicações web, que conta hoje com 126 mil estrelas).
A rápida popularidade do site fez com que as críticas à jornada “996” ganhassem os holofotes da mídia não apenas na China, mas também ao redor do mundo, levando à reflexão se o desenvolvimento econômico e a modernização precisam ser acompanhados de trabalho excessivo, em nível de esgotamento. No site, há transcrição de dispositivos da legislação trabalhista chinesa, traduzida para vários idiomas, no intuito de contribuir com informação para todos e afirmar que a prática da jornada “996” é ilegal. Por fim, a frase: “se você continuar a tolerar o horário de trabalho ‘996’, arriscará sua própria saúde e poderá precisar permanecer em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) algum dia. A vida dos desenvolvedores é importante”.
O protesto online ganhou grande repercussão e tornou-se popular de maneira muito rápida, encorajando muitas pessoas a se expressaram publicamente sobre o assunto, o que gerou intenso debate nacional sobre o tema, apesar da censura aos meios de comunicação existente na China. A página foi amplamente compartilhada pela população, através do aplicativo de mensagens WeChat e do microblog Weibo, bem como em sites de redes profissionais. Aliás, a hashtag #996 já foi utilizada e visualizada mais de quinze milhões de vezes após a entrada do site no ar.
A homepage que desencadeou o debate (996.ICU) não foi bloqueada pelo governo chinês, mas algumas empresas de tecnologia já se recusam a abri-la em seus navegadores próprios, comunicando aos usuários que o site contém informações ilegais ou mal-intencionadas. Dentre as empresas que bloquearam o site, estão o WeChat, o Alibaba e o navegador 360 da Qihoo.
Na plataforma, trabalhadores anônimos de cerca de noventa empresas publicaram informações sobre o quanto eles trabalham e, assim, contribuíram para a elaboração de uma lista negra com os nomes das empresas que praticam o regime “996”, incluindo gigantes no setor de tecnologia como Tencent e Alibaba. Além disso, os trabalhadores também publicaram uma lista branca das empresas que praticam horários “razoáveis” de trabalho, mas a quantidade é bem menor quando comparada à relação daquelas que exigem jornadas exaustivas.
À AFP (em entrevista traduzida pela Folha de S. Paulo), um engenheiro declarou que “está esgotado, ganha mal e se sente como um hamster fazendo girar uma roda”. Disse que quando assistiu “Tempos Modernos” começou a chorar: ver o trabalhador de linha de montagem interpretado por Charles Chaplin foi como se olhar no espelho. Ainda de acordo com a reportagem, um desenvolvedor de videogames afirmou que certa vez passou 110 horas sem sair do escritório e hoje, com 31 anos, sofre com problemas glandulares e depressão, que ele atribui ao excesso de trabalho: “não tenho a sensação de ter realizado coisa alguma e estou longe de ser rico”.
Aliás, os baixos salários também incrementaram o debate nacional acerca das jornadas exaustivas. O art. 36 da Lei do Trabalho chinesa determina que, assim como no Brasil, os empregados não devem trabalhar mais que 44 horas semanais ou 8 horas diárias. Além disso, o art. 41 da mesma lei dispõe que os sindicatos podem negociar, em caso de necessidade de produção ou operação, a extensão do horário de trabalho, que não deve ser superior a uma hora diária. Em circunstâncias especiais (que a lei não deixa claro quais são), desde que garantida a saúde dos trabalhadores, pode haver uma extensão de três horas ao dia, no limite máximo de 36 horas extras por mês. O art. 31 da Lei de Contrato de Trabalho da República Popular da China estabelece que as horas extras devem ser devidamente remuneradas e, de acordo com o art. 85 do mesmo diploma legal, caso não haja compensação financeira pelas horas extras quando do pagamento do salário, as empresas devem pagar uma remuneração adicional ao trabalhador, não inferior a 50% e não superior a 100% do salário do empregado.
No entanto, de acordo com os inúmeros relatos de trabalhadores que compartilharam e contribuíram com o site 996.ICU, esses dispositivos carecem de efetividade, uma vez que muitas empresas os obrigam a cumprir jornada bastante superior aos limites legais e sequer remuneram as horas extraordinárias, além de pagarem salários normalmente baixos. De acordo com a plataforma online Boss Zhipin, os trabalhadores do setor de tecnologia na China ganham em média 5 dólares por hora, cinco vezes menos do que os japoneses, por exemplo.
Conforme reportagem do China Daiyle, o setor de tecnologia entrou novamente no centro das atenções após a morte súbita prematura do CEO de uma plataforma online que fornece serviços de assistência médica, hoje uma das principais prestadoras de serviços da área no país. O CEO vinha sofrendo pressões de trabalho nos últimos anos e estava sob constante tensão devido ao medo de que a empresa falhasse. Empregados de alto escalão na indústria de TI na China trabalharam em média 9,3 horas extras por semana, a maior média entre todos os setores no ano passado.
No entanto, durante o debate nacional acerca da excessiva jornada de trabalho, algumas declarações de empresários do setor de tecnologia causaram polêmica. O fundador do Alibaba, Jack Ma, afirmou que o sistema 996 “é uma enorme benção para aqueles que desejam o sucesso” e o presidente da JD.com, Richard Lu, chamou de “folgados” aqueles que se recusam a trabalhar duramente. Várias empresas de tecnologia enviaram a mensagem de que precisam mais de seus empregados agora. Em uma postagem no WeChat de janeiro, o fundador da empresa de e-commerce Youzan pediu aos empregados que adotassem a cultura 996: “se você não sente pressão para trabalhar em uma empresa, deve ir embora, pois seu empregador está morrendo”.
A polêmica online teve consequências e, no início do mês de abril, um grupo de pessoas compareceu a nove empresas integrantes da lista negra acima mencionada (que praticam o regime “996”) a fim de submeter petições contrárias à realização de horas extras ilegais e requerendo que as empresas respondessem publicamente. No entanto, ainda não está claro como as empresas enfrentarão o debate e tampouco se sabe se responderão aos protestos e questionamentos.
Ao menos, há alguma esperança de mudanças, já que o governo chinês deu sinais de que está escutando os trabalhadores. Em que pese ainda não haver qualquer comunicado oficial, o jornal estatal Diário do Povo pediu, numa postagem no site Weibo, que as autoridades revisem o horário de trabalho na indústria: “A legitimidade do sistema de trabalho 996 é claramente questionável e é quase impossível que os indivíduos digam ‘não’ a esse mecanismo.”
Fontes:
http://www.chinadaily.com.cn/china/2016-10/08/content_26985367.htm
https://qz.com/1589309/996-icu-github-hosts-chinese-tech-worker-complaints/
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/19/internacional/1555672848_021656.html
https://www.fool.com/investing/2019/04/25/are-tencent-and-alibaba-silencing-overworked-996-e.aspx
Imagem:https://996.icu/#/en_US