O movimento grevista que sacudiu a Dinamarca e algumas notas sobre o caso brasileiro

* por Beatriz Pereira dos Santos, advogada e assessora sindical, mestranda em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário na UERJ

Foto: Per Palmkvist Knudsen (Wikimedia Commons)

O movimento de trabalhadores do setor público que quase literalmente parou a Dinamarca em 2018 acaba de completar um ano. Os sindicatos dos servidores reivindicavam reajuste salarial de 8,2% (equivalente ao setor privado), intervalos remunerados de almoço e uma resolução sobre o horário de trabalho dos professores. As autoridades municipais ofereceram 6,7% de reajuste, argumentando que qualquer aumento superior seria inviável e representaria a perda de 5 mil empregos nos governos locais.

Iniciou-se, então, um verdadeiro cabo de guerra entre autoridades e trabalhadores. As primeiras articulavam um lockout, enquanto os últimos conseguiam arregimentar cada vez mais pessoas em favor do movimento que já abrangia 750 mil trabalhadores (13% da população total, num país com 5,7 milhões de habitantes). A paralisação ameaçava atingir setores centrais do serviço público, como saúde, educação, transporte e até mesmo o sistema prisional. Chegou a ser realizada uma reunião com cerca de 10 mil sindicalistas e representantes dos servidores por local de trabalho, para definir detalhes do movimento grevista. As reivindicações passaram a receber também o apoio dos trabalhadores no setor privado.

Diante da possibilidade concreta de greve geral no setor público, o governo viu-se obrigado a retomar a negociação e as paralisações foram adiadas por algumas vezes. Ao final, chegou-se a um acordo de 8,1% de reajuste salarial pelos próximos três anos, substancialmente superior ao aumento de 6,9% conquistado no ano anterior. Para os empregados das regiões, uma das esferas administrativas do poder público dinamarquês, esse aumento representou 6,1% de ganho real. Também conquistaram equiparação salarial com o setor privado para os empregados regionais, a contratação adicional de enfermeiros e assistentes sociais, licenças para tratamento de fertilidade, acompanhamento de filhos doentes e férias, além da garantia dos intervalos para almoço remunerados, embora ainda falte regulamentação minuciosa desse último direito. A reivindicação dos professores de um acordo sobre suas horas de trabalho não foi acolhida, mas foi estabelecida uma comissão para investigar os desafios e possibilidades para entabular uma avença a tal respeito.

Computou-se que o acordo representaria um custo de 3,6 bilhões de euros ao estado dinamarquês, o que a Confederação de Empregadores da Dinamarca chamou de “economicamente viável”, ressaltando a importância do acordo para trazer calma ao setor público, ao abranger os empregados do Estado, das regiões e das municipalidades.

Em que a experiência nas terras tão distantes da Dinamarca pode trazer ao sindicalismo do setor público brasileiro de 2019? Para começar, precisamos registrar que o Brasil subscreve a Convenção 151 da OIT, denominada Convenção sobre Direito de Sindicalização e Relações de Trabalho na Administração Pública, e a Recomendação 159, sobre os Procedimentos para a Definição das Condições de Emprego no Serviço Público. No Brasil, os servidores públicos não possuíam o direito à livre organização sindical e à greve até a Constituição de 1988, que previu estes direitos nos incisos VI e VII do art. 37. Por força do art. 5º, parágrafo segundo, da Constituição, o direito de greve dos servidores públicos detém status de garantia fundamental, conforme reconhecido pelo STF. No entanto, o Congresso Nacional ainda não legislou especificamente sobre a proteção contra atos antissindicais ou quanto ao direito à negociação coletiva no setor público, como a Convenção 151 da OIT indica aos estados signatários. Uma regulação das negociações poderia atuar para trazer o governo para negociar mais rapidamente, evitando as greves prolongadas que muitas vezes experimentamos no setor público. O Poder Judiciário, a seu turno, não raro atua para limitar o direito de greve dos servidores públicos, a exemplo da decisão proferida pela Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, em fevereiro de 2019, para limitar a compensação das faltas na paralisação dos servidores da Universidade de São Paulo.

Como visto na experiência dinamarquesa, a viabilidade de uma greve que poderia paralisar o setor público foi fundamental para trazer o governo de volta à mesa de negociação e melhorar a proposta inicial. O resultado foi um acordo amplo que efetivamente representou ganhos para os trabalhadores, evitando um conflito generalizado e, a despeito de uma avaliação inicial de que não poderiam melhorar a proposta, alcançou-se um acordo “economicamente viável”. A participação de diversos setores do serviço público (saúde, educação, etc), em esferas diferentes da administração pública (regionais e municipais, por exemplo) também foi marcante para a articulação nacional do movimento dinamarquês e pode indicar uma importante forma de organização, que muitas vezes se forja nas greves de solidariedade brasileiras. Na Dinamarca, o apoio do setor privado ajudou a respaldar o movimento do setor público. No Brasil, os empregados privados mais pauperizados são os que mais dependem dos serviços públicos, mas, não raro, veem com maus olhos as greves de servidores. A construção dessa solidariedade, em meio à grande miséria social brasileira, é um desafio que poderia trazer ganhos a toda a classe trabalhadora.

Em razão dessa relação dialética entre o conflito e a negociação é que os recursos de intervenção sindicais são essenciais, demandando atenção do poder público às prerrogativas dos trabalhadores para o exercício pleno das atividades sindicais, inclusive do direito de greve e a proteção contra atos antissindicais. E este mesmo direito de greve é de tamanha essencialidade à composição de poderes entre empregador e empregados que “necessariamente deve conter a potencialidade de causar prejuízo ao empregador”[1], sob pena de não cumprir sua verdadeira função social instrumental de levar a um acordo que efetivamente dê conta das insatisfações e reivindicações dos trabalhadores. A experiência dinamarquesa mostra que de nada adianta varrer o conflito para debaixo do tapete. Vale a pena enfrentá-lo a fim de obter verdadeiros ganhos para toda a sociedade.

[1] SIQUEIRA NETO, José Francisco. Contrato coletivo de trabalho: perspectiva de rompimento com a legalidade repressiva. São Paulo: LTr, 1991, p. 126.

Fontes:

https://www.conjur.com.br/2018-jun-15/direitos-fundamentais-direito-greve-servidores-publicos-brasil-alemanha

http://www.arbejdsretten.dk/generelt/labour-court.aspx

https://www.thelocal.dk/20180430/heres-what-resolved-danish-labour-dispute-means-for-public-sector-employees

https://www.wsws.org/en/articles/2018/05/08/denm-m08.html

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,tst-e-a-greve-no-setor-publico,70002733706

http://cphpost.dk/news/national-strike-and-lockout-postponed-by-two- weeks.html

SIQUEIRA NETO, José Francisco. Contrato coletivo de trabalho: perspectiva de rompimento com a legalidade repressiva. São Paulo: LTr, 1991

Autor: Beatriz Santos

Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário no PPGD/UERJ, advogada e assessora sindical.

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