O Novo e o Mesmo em curto-circuito: a revolta dos Coletes Amarelos na França

* por Tiago Magaldi, doutorando em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e membro do Laboratório de Estudos do Trabalho, Profissões e Mobilidades (LEST-M) da UFSCar

O espírito brincalhão da Zona Sul carioca ilustrou bem o sentimento geral dos que experimentavam, de variadas maneiras, as chamadas “Jornadas de Junho de 2013”. Diz-se que, naquele momento particular da cidade e do país, era comum que algumas manifestações menores, praticamente diárias, fossem tomadas pelos locais como uma “prézinha” – aquele burburinho para o qual se vai pra tomar uma ou duas cervejas à tardinha apenas para dar embalo à saída noturna –, tamanha foi a incorporação das manifestações no cotidiano do moradores: “tomamos uma na manifestação e partimos!”. Passada a onda de indignação, tudo voltou ao seu lugar – inclusive as “prézinhas”, para a alegria dos donos dos bares da Zona Sul, lugares onde elas tradicionalmente ocorriam. Algo semelhante parece se passar com os Coletes Amarelos franceses, com o colorido áspero particular que as manifestações tomam naquele país. Lá, como aqui, uma pergunta fica no ar: qual foi o saldo?

Os temas que compõem a agenda dos Coletes Amarelos (Gilets Jaunes, em francês) nos são familiares desde 2013, e até hoje rondam o debate público – o preço dos combustíveis, o limite de velocidade das rodovias, o gasto com impostos, o parasitismo dos políticos profissionais e dos sindicatos, etc –; o mesmo vale para alguns dos pontos cegos declarados pelos analistas: o caráter súbito do movimento, o papel das redes sociais, a ausência de lideranças bem definidas, a heterogeneidade das bandeiras e sua fluidez, o sentimento prevalente de indignação, dentre muitos outros. Em suma, não se sabe bem de onde veio a avalanche e nem para onde ela vai, se é que efetivamente irá a algum lugar.

Também como em nosso país, as grandes manifestações que tomaram a França de assalto começaram sem que seus agentes provocadores tivessem ideia do que viria a seguir. Ainda que se pudesse indicar diversas pessoas e eventos como peças-chave para o desencadear do movimento desde pelo menos o início de 2018[1], a crônica jornalística francesa consagrou três deles como os oficiais iniciadores das ações: Priscillia Ludosky, Éric Drouet e Maxime Nicolle.

Priscillia Ludosky, 32 anos, é, segundo o perfil traçado pela imprensa de modo quase uníssono[2], uma ex-bancária pacata que hoje revende produtos cosméticos pela internet: uma “empresária” que trabalha em casa. Entra em cena anonimamente, em maio de 2018 – antes mesmo do movimento ter sido batizado –, ao criar uma petição online no site Change.org pedindo a baixa do preço dos combustíveis. A justificativa dada pela empresária para a sua indignação foi que, por trabalhar “para si”, usa bastante seu próprio carro, o que lhe deixa particularmente sensível às altas de combustível[3]. Juntamente com Eric Drouet, jovem caminhoneiro branco de 33 anos apaixonado por carros, criaram um evento no Facebook, marcando um bloqueio de importantes rodovias do país para o dia 17 de novembro de 2018, um sábado. Maxime Nicole (“Fly Rider” nas redes sociais), francês de 32 anos que trabalha de forma intermitente como caminhoneiro, “dono” de uma página no Facebook que conta com mais de 170 mil membros, completa a “troika” reconhecida pela imprensa como “líder” de fato do movimento.

Em 17 de novembro de 2018, para a surpresa de todos, cerca de 280 mil pessoas se mobilizaram no país inteiro[4]. A principal ação foi o bloqueio de estradas, mas ocupações de pedágio e cobrimento de radares de velocidade também ocorreram. Praticamente todas as cidades do país foram tocadas de alguma maneira pelo movimento[5]. Desnorteado, o governo Macron vacila, terminando por dobrar a aposta – o ministro do interior nega veementemente a possibilidade de suspensão do imposto sobre os combustíveis[6], principal justificativa pública para os atos. No sábado seguinte, 24 de novembro, nova manifestação massiva. Dessa vez, o enfrentamento é a tônica. O governo não soube mensurar a disposição de luta dos manifestantes, e, assim, rodaram o mundo as imagens da batalha campal ocorrida na Champs-Elysée já decorada para o Natal, bem como os gritos de “Macron, démission!”, entoados pelos manifestantes.

Desde então – e já se vão sete meses! –, cada sábado é marcado por manifestações dos Coletes Amarelos, com adesão variada. Trata-se do movimento social de maior duração na França pós-guerra[7], embora não seja o de maior adesão entre os franceses. É, sem sombra de dúvida, um marco histórico. No sábado anterior ao fechamento deste texto (o do dia 22/06), as manifestações parecem ter perdido força. Mas isso já ocorreu antes e não prejudicou novas explosões seguintes. Por não se ter clareza daquilo que as insufla, não é possível prever até onde irão.

Ao estudioso do trabalho não passará despercebida a ocupação dessas lideranças, nem dos outros cinco autodeclarados porta-vozes do movimento[8], apontados logo após as manifestações de 24 de novembro. Pequenos empresários, caminhoneiros autônomos (sempre eles!), jovens trabalhadores precários, “empreendedores”… em suma, trabalhadores que, segundo o discurso neoliberal hoje hegemônico, devem depender apenas de si mesmos para garantir sua existência, e para os quais o governo é apenas uma presença incômoda, materializada nos impostos, pedágios e radares de velocidade. Há um forte descolamento dos tópicos da política oficial daqueles da vida cotidiana: à justificativa de Macron para o aumento de impostos – a centralidade de sua política ambiental, cuja referência é o debate público internacional ocidental – os manifestantes opõem o que enxergam como um assalto diário a seu próprio bolso. Sua referência é o cotidiano – o pedágio, a gasolina, o preço da passagem, a burocracia labiríntica –, não as pomposas conferências internacionais sobre o clima organizados pela ONU.

O perfil dos manifestantes é semelhante ao de seus porta-vozes: são aqueles que, segundo Vincent Tiberj, sociólogo francês do Institut d’Études Politiques de Bordeaux, “trabalham, pagam impostos e ganham demais para serem ajudados [pelo governo], mas não o suficiente para viver bem”[9]. São trabalhadores que, cada vez mais, estão sendo precarizados em suas relações de trabalho, deixados à própria sorte no provimento de suas necessidades de reprodução física e simbólica. Tiberj os chama de les petits moyens, algo como “baixa classe média”. Não são a base da pirâmide.

Segundo Pierre Dardot e Christian Laval [10], a atual utopia do capital é uma sociedade de “empresas”: cada indivíduo deve pensar a si mesmo como uma empresa; cada um deve ser “empreendedor de si mesmo”, atuando “livremente” num mercado em estado de concorrência permanente. Tudo aquilo que tenha alguma pretensão solidária para além do indivíduo é tido ou como ineficiente, ou como corrupto – quando não os dois. A incrustação cada vez maior da racionalidade neoliberal na vida social do trabalho – na década de 1990 via reestruturação da administração, hoje colonizando a subjetividade – tende a desconstruir o que ainda resta de coletivo em nossa experiência cotidiana.

A questão é que, em um mundo no qual um caminhoneiro (ou pequeno empresário, ou produtor cultural independente, ou motorista de aplicativo, etc.) se vê cada vez mais como o responsável exclusivo por sua existência, qualquer intervenção estatal explícita passa de fato a representar uma dificuldade adicional indesejada. Em um mundo de “empresários de si” a política como meio de produção de consensos deixa de fazer sentido; basta-lhes a ditadura do mercado. Não é o “Estado” o alvo aqui, é a própria regulação social via política. Mas até que ponto é possível conjugar enormes desigualdades sociais, concentração da propriedade privada e ausência de regulação estatal sem fortes convulsões sociais?

Rosana Pinheiro Machado, escrevendo logo em seguida aos primeiros atos massivos dos Coletes Amarelos[11], afirma que seria equivocado tentar definir de antemão esses movimentos, como se seu caráter “conservador” ou “progressista” dependesse de alguma “natureza” das “entidades” responsáveis por sua organização. De fato, esta maneira essencializante de interpretar a ação dos movimentos sociais parece ser típica de um momento histórico no qual a utilização das ruas para se manifestar já foi tão ritualizada que sua leitura pelo e seu impacto no mundo político quase que prescindem da sua própria realização: reduziu-se a seu efeito teatral, por assim dizer. Basta sabermos quem organizou a mobilização para sabermos suas finalidades. Quem já participou de atos dessa natureza já pôde experimentar a sensação de estar apenas representando algo, mas não vivendo algo. A diferença é apenas aparentemente sutil[12]. O centro do argumento de Pinheiro Machado é que, para ela, o resultado final dessas manifestações está mais ou menos em aberto desde o momento em que se inicia, motivo pelo qual não deveríamos etiqueta-los como de esquerda ou de direita.

Talvez não seja prudente radicalizar esta interpretação. Sim, tais movimentos, como os Coletes Amarelos, são um grito de “basta!”, mais ou menos disformes e sem direção ideológica totalmente definida de antemão. Mas isso não significa que essa efervescência possa ser canalizada para qualquer direção. Tais movimentos trazem tendências imanentes que não devem ser subestimadas. Afinal, são indivíduos socializados em determinadas experiências de classe, expostos a determinados enquadramentos ideológicos do mundo, que interagem cotidianamente com o mundo do trabalho e do espaço no qual estão particularmente inseridos. Se não levarmos isso em consideração estaremos assimilando acriticamente a imagem que os próprios manifestantes têm de si: que seriam apenas cidadãos abstratos que querem mudar “tudo isso que está aí”.  

A rejeição aos sindicatos é, nesse sentido, sintomática. Podemos lê-la enquanto crítica da suposta falsidade da performance de manifestação; mas também podemos fazê-lo enquanto radicalização de um individualismo “de novo tipo”, neoliberal, que aceita ainda apenas desaguar-se em um “povo” místico, e que encontra sua maior adesão entre a classe média precarizada (não por acaso, a pauta de empregos, típica de manifestações populares, não encontra espaço entre os Coletes Amarelos[13]). Esses manifestantes rejeitam a organização coletiva capaz de produção de novos sentidos políticos: a única ação política legítima aos seus olhos é a do conjunto de indivíduos atomizados, meramente coordenados. Garante-se assim o império ideológico do senso comum individual, de hegemonia neoliberal.

Apostar as fichas na tentativa de convencimento de movimentos “abertos” é deixar de perceber aquilo que essa hegemonia não permite nem tematizar. Se esses movimentos são interessantes para a esquerda é justamente por mostrarem claramente os limites da negação da produção coletiva de sentidos políticos, negação esta exibida orgulhosamente pela classe média precarizada e indignada e sua obsessão pela “limpeza simbólica”: nenhum deles foi corrompido pelo “poder”. Nenhum deles, também, conseguiu levar o movimento a efeitos progressistas concretos, muito pelo contrário. Não somos nós um excelente exemplo disso?

As manifestações dos Coletes Amarelos seguem acontecendo a cada sábado. Os franceses, como os brasileiros em 2013, parecem ter-se acostumado com elas, embora venham, mês a mês, perdendo a paciência com a falta de desenlace[14]. Tornaram-se um folclore do cotidiano da cidade, como as nossas. Ambas trataram como centrais a crítica veemente de partidos e sindicatos, expressões da “política profissional”, por se enxergarem como a “novidade” que não poderia ser “contaminada”. Mas talvez justamente por negarem qualquer forma de produção coletiva do Novo – afinal, já o eram em ato, pensavam –, sucumbiram ao Mesmo. Um importante sinal de que, sem a entrada das camadas populares organizadas em cena, tudo mudará apenas para que tudo continue igual.

REFERÊNCIAS

[1] https://www.liberation.fr/debats/2018/12/14/comment-les-gilets-jaunes-sont-nes-en-janvier-sur-un-rond-point-de-dordogne_1697685

[2] Por todos, ver https://www.nouvelobs.com/politique/20190115.AFP0781/priscillia-ludosky-la-force-tranquille-des-gilets-jaunes.html

[3] http://www.leparisien.fr/economie/consommation/sa-petition-contre-la-hausse-des-carburants-fait-le-plein-21-10-2018-7924635.php

[4] https://www.huffingtonpost.fr/2018/11/17/le-bilan-du-17-novembre-des-gilets-jaunes-en-cinq-chiffres_a_23592423/

[5]https://www.huffingtonpost.fr/2018/11/17/le-bilan-du-17-novembre-des-gilets-jaunes-en-cinq-chiffres_a_23592423/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/protestos-contra-o-presidente-emmanuel-macron-tomam-a-franca.shtml

[7] https://www.opendemocracy.net/en/can-europe-make-it/frances-yellow-vests-the-momentum-is-gone/?fbclid=IwAR0CYctpsKtC22GzKP2C0b32hyDkAnXoPOv4BFFuWzBWiM8us_QDINc63D8

[8] https://www.liberation.fr/checknews/2018/11/26/qui-a-choisi-les-huit-porte-parole-des-gilets-jaunes-que-veulent-ils_1694360

[9] http://www.leparisien.fr/societe/les-gilets-jaunes-un-mouvement-inedit-dans-l-histoire-francaise-24-11-2018-7952064.php

[10] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[11] https://theintercept.com/2018/12/03/franca-protestos-2013-brasil/

[12] Lembro de uma manifestante de 2013, por volta dos seus quinze anos aparentemente, dizendo a suas amigas: “esse é o dia mais importante da minha vida”. Creio que devamos levar a sério esse tipo de declaração.

[13] http://www.lefigaro.fr/decideurs/emploi/2019/01/25/33009-20190125ARTFIG00343-pourquoi-les-gilets-jaunes-ne-parlent-pas-d-emploi.php

[14] https://www.europe1.fr/societe/gilets-jaunes-mobilisation-en-baisse-avec-7000-participants-dont-950-a-paris-3904774

IMAGEM

https://www.facebook.com/groups/310403819778193/permalink/532143680937538/

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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