A Reforma da Previdência: o que está em jogo para o trabalhador?

* por Letícia Fernandes Albuquerque da Silva, advogada e assessora jurídica, mestranda em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário no PPGD UERJ

Imagem: Pixabay

Atualmente, a Reforma da Previdência vem sendo destaque todos os dias nos noticiários brasileiros e objeto das mais variadas discussões. No dia 20/02/2019 foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição 06/2019, ou PEC 06/2019, que insere modificações no sistema de previdência social, estabelecendo regras de transição, disposições transitórias, entre outras providências. Ademais, foi aprovada na última quinta-feira, dia 05/07/2019, o texto base da proposta pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados. As novas alterações remodelam ainda mais a redação proposta pelo governo.

Nos debates há quem concorde totalmente com a reforma e defenda que a economia brasileira depende da aprovação da proposta para que o país volte a crescer e novos postos de trabalhos sejam criados. Na contramão, há também quem discorde integralmente da reforma e garanta a sustentabilidade do regime atual. Não obstante, em meio a tantas polêmicas e debates, encontra-se o trabalhador, o cidadão comum, que pouco sabe sobre as mudanças que tanto poderão afetar-lhe no futuro, especialmente na aposentaria. Abordaremos, então, algumas das principais alterações do texto que irá para análise e aprovação do plenário da Câmara, mas que ainda poderá sofrer modificações. De acordo com a cartilha disponibilizada pelo governo e parecer do relator, abaixo as principais mudanças:

Aposentadoria por tempo de contribuição: essa modalidade atualmente não exige atingimento de uma idade mínima, o que possibilita aposentadorias em idades muitas vezes não tão avançadas. O requisito único é o tempo de contribuição mínimo de 35 anos para os homens e 30 anos para as mulheres. Na PEC 06/2019 não mais existe essa possibilidade de aposentadoria unicamente com base no tempo de contribuição.

Aposentadoria por idade: na regra atual, a exigência é de 65 anos de idade para homens e 60 anos para as mulheres. Ademais, há que ser cumprido também um tempo mínimo de contribuição de 15 anos. Na PEC 06/2019 existirá apenas essa modalidade, com a elevação do tempo mínimo de contribuição, que passa a ser de 20 anos. A idade para os homens é mantida em 65 anos, e para as mulheres, é aumentada para 62 anos. No substitutivo apresentado pelo relator, o tempo de mínimo de contribuição das mulheres é mantido em 15 anos, como na regra atual.

Cálculo do benefício (valor a ser recebido após a aposentadoria): atualmente, para ambas as aposentadorias é feita uma média aritmética dos 80% maiores salários de contribuição, ou seja, são excluídos os 20% menores salários.

Na aposentadoria por tempo de contribuição, a renda mensal inicial é de 100% dessa média. Sobre esse valor, incide ainda o fator previdenciário (mecanismo que, em geral, reduz o valor da aposentadoria) exceto quando o segurado atinge 96 pontos, se homem, ou 86 pontos, se mulher. A soma dos pontos é composta pelo tempo mínimo de contribuição da regra somada à idade do segurado. Por exemplo, uma mulher que se aposente aos 58 anos de idade e 30 anos de contribuição terá 88 pontos e, portanto, não sofrerá incidência do fator.

No caso da aposentadoria por idade, o cálculo atual é de 70% da média + 1% por ano de contribuição. A PEC 06/2019 prevê que todos os salários de contribuição serão considerados na média, ou seja, os menores salários também serão considerados. O valor final será de 60% (dessa média de todos os salários) + 2% para cada ano além dos 20 anos de contribuição. Dessa forma, o segurado só receberá 100% se contribuir por 40 anos.

Dessa maneira, como as regras são hoje:

As regras após a PEC 06/2019 e o parecer do relator seriam as seguintes:

A proposta também prevê cinco regras de transição para os trabalhadores da iniciativa privada que já estão inseridos no mercado de trabalho. Nesse caso, as regras permanecerão em vigor por até 14 anos após a aprovação da reforma. Importante ressaltar que o trabalhador sempre poderá optar pelas regras que lhe sejam mais vantajosas, abaixo descritas:

Sistema de pontos (regra de transição 1): a regra é semelhante à aposentadoria por tempo de contribuição integral, sem a incidência do fator previdenciário. O segurado deverá alcançar a pontuação resultante da soma do tempo mínimo de contribuição mais a idade. Hoje, a regra é de 96 pontos para os homens e 86 pontos para as mulheres, respeitando um mínimo de 35 anos de contribuição para eles e 30 anos para elas.  A transição prevê o aumento de um ponto a cada ano, até o limite de 100 para as mulheres, e 105 para os homens. No cálculo do benefício, será aplicada a regra geral prevista na PEC, de 60% da média (de todos os salários) + 2% para cada ano além dos 20 anos de contribuição.

Tempo de contribuição + idade mínima (regra de transição 2): nesse modelo é exigido o tempo de contribuição mínimo de 35 anos para os homens e 30 anos para as mulheres. Além do mais, necessária a idade mínima de 56 anos para as mulheres e 61 anos para os homens, no ano de 2019. A idade mínima se elevará meio ponto a cada ano, finalizando- se a transição após o transcurso de 8 anos para homens e 12 anos para as mulheres. Para o cálculo do benefício, também será aplicada a regra geral prevista na PEC 06/2019.

Pedágio de 50% (regra de transição 3): a modalidade só é permitida para quem está a dois anos de cumprir o tempo mínimo de contribuição atual (35 anos para homens e 30 anos para as mulheres). Não exige atingimento de idade mínima, porém será necessário o pagamento do pedágio de 50% do tempo que falta. Por exemplo, quem estiver a um ano de se aposentar, irá trabalhar mais seis meses, totalizando um ano e meio. Nesse caso, o cálculo do benefício será conforme a regra geral da PEC 06/2019, porém com incidência do fator previdenciário, cálculo que reduz o valor e leva em conta a expectativa de sobrevida do segurado.

Idade mínima + pedágio de 100% (regra de transição 4): para os segurados que já estiverem filiados ao Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor da emenda, será assegurada a aposentadoria com a idade mínima de 57 anos para as mulheres e 60 anos para os homens. Além do mais, serão exigidos os 30 anos de contribuição, se mulher, e 35 anos, se homem, mais um pedágio.  Nessa regra, é devido um período equivalente ao mesmo número de anos que faltam para o complemento do tempo de contribuição, na data em que a EC entrar em vigor. Por exemplo, um trabalhador que já tiver a idade mínima, mas apenas 33 anos de contribuição quando a EC entrar em vigor, terá que trabalhar mais 2 anos para completar os 35 anos, além de trabalhar mais dois anos para pagamento do pedágio. Nesse exemplo, o segurado trabalhará mais quatro anos ao total. Vale destacar que, nessa regra, o cálculo do benefício observará 100% de todos os salários do segurado.

Aposentadoria por idade atual (regra de transição 5): para os homens, a idade é mantida em 65 anos, porém seis meses são acrescidos anualmente, ao tempo mínimo de 15 anos de contribuição, até que se atinja a nova regra de 20 anos de contribuição. Para as mulheres, a idade de 60 anos é aumentada em seis meses a cada ano, até que se atinja a nova regra de 62 anos (o tempo de contribuição é mantido em 15 anos). Para o cálculo do benefício, também será aplicada a regra geral prevista na PEC 06/2019.

Aposentadoria por invalidez: a regra atual determina que a renda mensal inicial é de 100% da média (dos 80% maiores salários), para todos os segurados com incapacidade permanente para o trabalho. Na proposta, o benefício passará a ser de 60% (da média de todos os salários) + 2% para cada ano além dos 20 anos de contribuição. Contudo, no caso de invalidez em razão de acidente de trabalho, doenças profissionais ou do trabalho, a regra atual é mantida (100%).

Pensão por morte: a norma hoje, concede como renda mensal inicial o valor de 100% da média aritmética (dos 80% maiores salários). A PEC 06/2019 reduz o valor da pensão por morte ao determinar que será concedida uma cota familiar de 50% + 10% por dependente adicional, até o limite de 100% para 5 ou mais dependentes. No caso da perda da condição de beneficiado, o valor da cota-parte é extinto, sem reversão para outro dependente, como na regra atual. Ademais, é assegurado um salário mínimo ao beneficiário que não possua outra fonte de renda. Quem já recebe pensão por morte não terá alteração no valor do benefício.

Benefício de prestação continuada para idosos: o benefício integra o sistema da Assistência Social, sendo administrado pelo INSS.  A regra atual garante um salário mínimo para o idoso acima de 65 anos em condição de miserabilidade, que tenha renda mensal per capita inferior a ¼ do salário mínimo e será mantida. Ademais, tal requisito será incluído na Constituição. Atualmente, está previsto em lei ordinária, que pode ser alterada mais facilmente que uma norma constitucional.

As diversas alterações previstas na PEC 06/2019 foram listadas pela Câmara dos Deputados e resumidas pelo site do G1, sendo disponibilizadas para consultas. As modificações tornam mais difícil a concessão do benefício de aposentadoria, uma vez que são estabelecidos requisitos mais rigorosos. Ademais, as novas regras de cálculo são mais duras e resultam em valores substancialmente menores. Todavia, o benefício não poderá ser inferior a um salário mínimo nacional (atualmente de R$ 998,00), tampouco superior ao teto do INSS (hoje em R$ 5.839,45).

A reforma é pautada principalmente, na ideia da necessidade de equilíbrio e sustentabilidade do regime previdenciário. De acordo com notícia veiculada no próprio site da Previdência Social, a despesa com benefícios do Regime Geral de Previdência Social no ano de 2018 foi de R$ 586,3 bilhões, enquanto a arrecadação teria sido de R$ 391,2 bilhões. O déficit registrado foi de R$ 195,2 bilhões em 2018, um aumento de 7% em relação a 2017. No entanto, existem múltiplas controvérsias acerca de tais valores, bem como dos métodos de cálculo utilizados para sua apuração.

Em que pesem as cifras expostas, o debate que abarca apenas o viés econômico deixa de lado a faceta mais importante da Previdência, a redistribuição de renda. A Constituição Federal de 1988 possui uma patente dimensão social ao determinar que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (a) a garantia do desenvolvimento nacional e (b) a erradicação da pobreza e da marginalização, assim como a redução das desigualdades sociais e regionais.

O propósito da Previdência Social é a manutenção de um padrão de vida digno para o ser humano, efetivado através de um conjunto de medidas, uma rede protetiva. Funciona como mecanismo de redução das desigualdades sociais e desenvolvimento econômico e social. Não obstante, a evidente desigualdade social existente na população brasileira é confirmada através de pesquisas, como a realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, intitulada Síntese de Indicadores Sociais.

Referida pesquisa chegou à conclusão de que 26,5% da população brasileira, ou quase 55 milhões de pessoas, viviam com rendimento inferior a cerca de R$ 406,00 (quatrocentos e seis reais) mensais no ano de 2017, abaixo da linha da pobreza, considerada de US$ 5,50 diários.

Dessa forma, qualquer discussão deve levar em conta a realidade brasileira e não apenas o viés economicista. O trabalhador e seus dependentes necessitam do salário para sua sobrevivência, o qual pode ser substituído por um benefício previdenciário quando cumpridos os pressupostos legais. O benefício, assim, reveste-se de caráter alimentar. Será que as mudanças propostas asseguram um patamar mínimo para uma vida digna? De acordo com dados do Boletim Estatístico da Previdência Social, no Brasil, 53% das pessoas se aposentam por idade e 95% ganham menos de dois salários mínimos. A maior parte dos segurados precisa esperar a idade avançada, porque não possui o tempo mínimo de contribuição. A PEC 06/2019, ao prever uma única modalidade de aposentadoria por idade, com alterações para a elevação do tempo mínimo de contribuição de 20 anos, para os homens, e idade mínima de 62 anos, para mulheres, dificultará ainda mais o acesso ao benefício.

O trabalhador só terá direito a 100% do benefício quando completar 40 anos de contribuição, pois as regras de cálculo privilegiam os segurados que trabalham por mais tempo. As normas produzirão um “achatamento’’ dos benefícios dos trabalhadores que tenham pouco tempo de contribuição, inspirando reflexões. Consequentemente, é relevante que ocorra um estudo aprofundado acerca do tema, visto que um equilíbrio das regras só tende a contribuir para uma vida digna e, principalmente, para garantia dos direitos fundamentais previstos na Magna Carta.

Autor: Letícia Albuquerque

Mestranda em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário no PPGD UERJ, advogada previdenciarista e assessora jurídica no Instituto de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Queimados.

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