Declaração de direitos de liberdade econômica: uma breve análise das alterações na CLT propostas pelo Projeto de Conversão da MP 881/2019

* por Fernanda Cabral de Almeida, mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário na UERJ

Foto: Pedro França/Agência Senado

Em 30 de abril de 2019, o Presidente da República editou a Medida Provisória n. 881, que instituía uma verdadeira Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, pautada na livre iniciativa, no livre exercício de atividade econômica, na presunção de boa-fé do particular e na intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício das atividades econômicas.

O teor dos artigos trazia regras que diziam, basicamente, da relação entre aquele que desejar desenvolver atividade econômica e o Estado, prevendo a dispensa de autorizações prévias para o funcionamento de certas atividades, a desburocratização, a garantia à livre iniciativa e a necessidade de análise de impacto de todo ato regulatório editado pela Administração Pública.

Com um longo capítulo sobre as disposições finais, a Medida Provisória alterava a redação de dispositivos de oito leis, quais sejam: o Código Civil (Lei n. 10.406/2002), a Lei n. 6.404/1976 (sociedades por ações), a Lei n. 11.101/2005 (falência e recuperação judicial e extrajudicial), a Lei n. 11.598/2007 (diretrizes e procedimentos para a simplificação e integração do processo de registro e legalização de empresários e de pessoas jurídicas), a Lei n. 12.682/2012 (elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos), o Decreto-Lei n. 9.760/1946 (bens imóveis da União), a Lei n. 6.015/1973 (registros públicos) e a Lei n. 10.522/2002 (Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais).

A Medida, ainda, revogou integralmente a Lei Delegada n. 6/1962 (intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo) e a Lei n. 11.887/2008 (cria o Fundo Soberano do Brasil – FSB), bem como dois incisos do Decreto-Lei n. 72/1966 (Sistema Nacional de Seguros Privados).

Portanto, o foco era matérias de cunho empresarial, administrativo e registral, em consonância com os princípios elencados na própria medida, especialmente a livre iniciativa e a mínima intervenção do Estado.

O pronunciamento oficial do Presidente da República, contudo, ocorreu no Dia do Trabalho, 1º de maio de 2019. Com uma mensagem otimista, o Presidente falava em esperança e compromisso com a população. Os jornais noticiavam a futura geração de emprego facilitada pelo novo incentivo ao empreendedorismo e ao livre mercado.

Chegada a Medida Provisória ao Congresso Nacional e instituída Comissão Mista para sua análise, os parlamentares optaram pela criação de um projeto de lei de conversão, constante de relatório da autoria do Deputado Jeronimo Goergen (PP-RS) que foi aprovado em 11 de julho de 2019.

Chama a atenção, contudo, o fato de que o Projeto de Lei de Conversão passou a incluir também uma série de dispositivos de caráter trabalhista, sendo certo que, somente com relação à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), haveria alteração na redação de 33 dispositivos, a criação de três novos artigos e 20 revogações. Portanto, uma mudança substancial e totalmente inovadora, já que a Medida Provisória originalmente editada pela Presidência da República sequer mencionava a CLT.

Uma vez que a Medida Provisória se intitula uma Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, termo que está mantido no Projeto de Lei de Conversão, é de se esperar que as alterações propostas para a CLT tenham por objetivo alcançar os princípios que norteiam a Medida Provisória, mantidos no Projeto, e aqui já mencionados: I – a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; II – a boa-fé do particular perante o Poder Público até prova do contrário; III – a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e IV – o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.

De fato, inúmeros dispositivos alterados tratam da Carteira de Trabalho e Previdência Social, que passaria a ser emitida pelo Ministério da Economia, preferencialmente de modo eletrônico. As regras versam basicamente sobre modernização e facilitação dos registros, muito embora seja criticável a revogação do artigo 54 da CLT, que prevê multa de um salário mínimo para a empresa que deixar de registrar o contrato de trabalho na CTPS de empregado. Ao todo, quanto a este assunto, foi modificada a redação de sete dispositivos e revogados outros quatorze.

Foto: Tony Winston / Agência Brasília

Outra alteração profunda diz respeito à fiscalização do trabalho, autuações fiscais e processos administrativos. Ao todo, sofreram alteração na redação dezesseis artigos, foram inseridos na CLT dois novos artigos e revogadas disposições contidas em outros três. Chama atenção a revogação do artigo 160 da CLT, que exige a prévia inspeção e aprovação das instalações de todo novo estabelecimento pela autoridade regional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho. Pelo projeto, fica mantida apenas a possibilidade de interdição do estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento quando constatado risco iminente ao trabalhador.

Outra regra que desmerece a prevenção de riscos é a pretendida alteração do artigo 163 da CLT, cuja nova redação dispensa estabelecimentos, locais de obra com menos de 20 trabalhadores e as micro e pequenas empresas de constituírem a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA).

A crítica que se faz é que o Brasil já é o quarto país no ranking mundialem acidentes de trabalho. Dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho indicam que, desde 2012, foram noticiados mais de 4,5 milhões de acidentes de trabalho, com a ressalva de que estes dados só englobam a população com vínculo de emprego regular. Isso corresponde a uma notificação de acidente a cada 49 segundos. Um trabalhador morre a cada 3 horas e 43 minutos no Brasil vítima de acidente de trabalho.

Também é alarmante o número de dias de trabalho perdidos em razão destes acidentes. Ainda segundo dados do Observatório, desde 2012, este número foi superior a 378 milhões, o que certamente não é do interesse do mercado. Mas não é só o mercado que sai perdendo, o INSS gastou com estes afastamentos, desde 2012 até o momento em que este artigo está sendo escrito, quase R$ 85 bilhões. Portanto, fica a questão: como pretende o Parlamento aquecer a economia, garantir a livre iniciativa e a liberdade econômica ao afrouxar regras relativas à segurança do trabalho, considerando que os acidentes de trabalho são um considerável fator gerador de despesas, não só para o Estado, mas também para os próprios empregadores?

Ao tentar buscar as respostas no texto do Parecer do Relator da Comissão Mista, verifica-se que o documento só menciona a questão da CIPA, asseverando que “existem outras maneiras no atual cenário tecnológico de se verificar as condições de segurança pelas quais nos enfrentamos” e reforçando que a garantia provisória de emprego do membro da CIPA permanece mantida.

Deste modo, não fica muito claro como que o afrouxamento de regras de segurança no trabalho pode contribuir para a melhora do desempenho do país nos rankings de liberdade econômica mencionados pelo Relator do Projeto [1].

Seguindo na análise do Projeto de Lei de Conversão, verificamos que muitas modificações se referem à duração do trabalho, mais precisamente, a alteração de seis dispositivos, a inclusão de um artigo e a revogação de disposições de dois artigos.

Basicamente, a intenção é permitir o trabalho em domingos e feriados, independentemente de prévia autorização da autoridade administrativa (artigo 68 da CLT). Enquanto que, na redação atual, o trabalho nesses dias é considerado uma exceção, devendo ser justificado, autorizado e/ou previsto em normas coletivas, o novo texto pretende tornar a permissão do trabalho em tais dias a regra geral, embora continue garantido ao empregado o pagamento da respectiva remuneração em dobro ou a folga compensatória em outro dia (artigo 70 da CLT).

Quanto ao domingo, especificamente, a previsão do Projeto é no sentido de que o descanso semanal deva recair em ao menos um domingo a cada quatro semanas (artigo 68, parágrafo único, da CLT).

O Projeto também dispensa a necessidade de acordo individual ou norma coletiva para que os trabalhadores na área de telefonia, telegrafia submarina e subfluvial, radiotelegrafia e radiotelefonia trabalhem aos domingos e feriados (artigo 227).

Não se vislumbram maiores prejuízos para o trabalhador especificamente na questão afeta à duração do trabalho. O legislador simplificou e consolidou a matéria em poucos e simples dispositivos, de modo que a grande mudança se refere à relação entre o empregador e o órgão de fiscalização do trabalho ou os sindicatos, já que prévias autorizações passam, em regra, a ser desnecessárias nestes casos.

Finalmente, quanto ao tema duração do trabalho, pretende-se revogar o artigo 319 da CLT, que atualmente veda aos professores a regência de aulas e o trabalho em exames em domingos.

Não houve qualquer explicação no relatório do Projeto acerca de tal modificação, muito embora se possa inferir que a alteração acompanha a intenção do legislador em permitir, como regra, o trabalho em tais dias.

Ainda com relação à jornada, destaca-se a profunda alteração no artigo 74 da CLT, que trata do registro do horário de trabalho. O Projeto aumenta de 10 para 20 o número de empregados nos estabelecimentos dispensados de fazer este registro (artigo 74, §1º). Curiosa é a redação do §3º que permite a “utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho”. Trata-se, portanto, de uma nova modalidade de controle de jornada prevista na lei, mediante a qual, ao que parece, apenas o trabalho fora do horário contratual seria registrado, independentemente de negociação coletiva.

Outra novidade é a inserção do §2º ao artigo 444 da CLT. Este artigo já havia sofrido recente transformação com a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017) que, ao inserir nele o parágrafo único, criou a figura do “empregado hipersuficiente”, definido como aquele que recebe salário superior ao dobro do teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social e que possui diploma de nível superior. Este empregado pode estipular livremente seu contrato de trabalho, inclusive quanto aos direitos que podem ser objeto de negociação coletiva previstos no artigo 611-A da CLT.

O Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória n. 881/2019, entretanto, insere um novo parágrafo no artigo, dispondo que “os contratos de trabalho de remuneração mensal acima de 30 (trinta) salários mínimos, cujas partes contratantes tenham sido assistidas por advogados de sua escolha no momento do pacto, será regido pelo direito civil, ressalvadas exclusivamente as garantias do art. 7º da Constituição Federal” (sic).

Portanto, trata da figura de empregado que, atualmente, recebe salário superior ao previsto para o trabalhador hipersuficiente, independentemente do grau de escolaridade, e que estará totalmente excluído do Direito do Trabalho, aí compreendendo seus princípios.

As razões para a inserção deste dispositivo foram assim esclarecidas pelo Relator do Projeto:

“As determinações acerca da legislação trabalhista são voltadas diretamente para a noção de vulnerabilidade e assimetria entre o empregado e o empregador. Entretanto, essa hipótese parece diluída na situação em que alguns empregados auferem quantia considerável podendo fazer jus a um regime mais equilibrado juridicamente, razão pela qual se propõe a subsidiariedade das normas trabalhistas ao contrato firmado.” [grifos nossos]

Além do exercício de criatividade que ficará a cargo da doutrina para dar nome a essa nova figura – é difícil imaginar que nomenclatura se aplicaria a um empregado “mais do que hipersuficiente” -, uma análise aprofundada deste dispositivo é urgente e necessária.

As perguntas não param de surgir, especialmente com a explicação do Relator: o que é um regime mais equilibrado? Por que não consta expressamente do texto a aplicação subsidiária do Direito do Trabalho, mencionada apenas no Relatório?

Segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social de 2017, naquele ano foram 56.338 contribuintes empregados com rendimento mensal de 30 a 40 salários mínimos e 51.425 com rendimento mensal superior a 40 salários mínimos. Ambas as faixas salariais representam pouco mais de 0,2% do total de contribuintes empregados.

Assim, não fica bem claro de que forma esse dispositivo impactaria positivamente a liberdade econômica em tal velocidade que justificasse sua inclusão em um Projeto de Conversão de Lei de uma Medida Provisória que, como se sabe, tem prazo para ser apreciada, neste caso, até 10 de setembro deste ano.

Outra alteração relevante que merece comentário é a nova redação que se pretende dar ao §2º do artigo 2º da CLT, que dispõe sobre o grupo econômico. É importante que se diga que a atual redação do dispositivo é recente, tendo sido conferida pela Reforma Trabalhista de 2017.

A mudança decorreu do acolhimento da Emenda n. 155 apresentada pela Senadora Soraya Thronicke (PSL-MS). Contudo, a última redação adotada difere substancialmente da apresentada na emenda e se revela uma verdadeira tragédia.

Além de suprimir a parte do dispositivo que explica o conceito de grupo econômico, faz uma enorme confusão entre responsabilidade subsidiária e solidária dos membros do grupo. A redação final proposta é a seguinte: “a existência de grupo econômico não impõe responsabilidade subsidiária, ressalvado o disposto no art. 50, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, hipótese que atrairá a responsabilidade solidária pelas obrigações decorrentes da relação de emprego”.

Ininteligível. Contudo, num esforço para tentar compreender, a única inferência possível de se fazer é que o legislador quis deixar claro que se devem usar as regras de desconsideração da personalidade jurídica previstas no artigo 50 do Código Civil, que também foi profundamente alterado neste mesmo Projeto de Lei de Conversão, visando à diminuição da quantidade de vezes em que a teoria é aplicada no Brasil, em razão do que classificou o Relator se tratar de “uma má compreensão da formulação objetiva dessa teoria e a confusão conceitual com outras formas de ineficácia da autonomia patrimonial” por parte do Poder Judiciário.

Deixamos para o final aquele que, sem dúvida, representa o maior “jabuti” deste Projeto. Prevê-se a revogação do §4º do artigo 193 da CLT, cujo teor reconhece que as atividades de trabalhador em motocicleta são perigosas, o que, na prática, confere a esses empregados o direito de perceber o adicional de periculosidade.

Absolutamente nenhuma relação com a liberdade econômica possui esse dispositivo legal.

Esse direito foi conquistado pela categoria em 2014, por meio da Lei n. 12.997, e é resultado de um dado alarmante que consiste no alto número de acidentes no trânsito, especialmente com motos. Não há notícias de que a situação tenha melhorado a ponto de se suprimir essa previsão legal. Dados do Relatório Anual da Seguradora Líder – DPVAT indicam que, em 2018, 75% das indenizações foram pagas em decorrência de acidentes envolvendo motocicletas.

Fogem do escopo desta análise as alterações em outras leis que se relacionam com o Direito do Trabalho, como, por exemplo, na Lei n. 605/1949 (descanso semanal remunerado) e na Lei n. 10.101/2000 (participação nos lucros e resultados).

No entanto, de uma maneira geral, a impressão que fica é a de que as alterações na CLT aqui analisadas podem ser divididas em dois grandes grupos: (a) um primeiro que se refere a questões burocráticas e com maior impacto na atuação do mercado, como a previsão para a CTPS eletrônica, o trabalho em domingos e feriados (já autorizado, porém com mais exigências para a sua realização) e a atividade de fiscalização do trabalho; e (b) um segundo grupo que, de fato, altera significativamente alguns pontos dos direitos dos trabalhadores, dentre os quais se destacam a supressão do adicional de periculosidade do motociclista, a responsabilidade do grupo econômico, a aplicação do direito civil a alguns contratos de trabalho e a extinção da CIPA.

Embora se consiga vislumbrar pertinência entre o primeiro grupo acima mencionado e a liberdade econômica, que se pretende fomentar, não há qualquer razão aparente que justifique a inclusão das matérias afetas ao segundo grupo neste projeto, cujo tempo para discussão com toda a sociedade e amadurecimento não é muito grande.

O próprio Relator do Projeto recomendou a rejeição de emendas que procuravam alterar o Código de Defesa do Consumidor, por entender que alterações em tal lei “urgem discussão mais aprofundada”, o que nos leva a indagar se o trabalhador, tão hipossuficiente em sua relação de trabalho quanto o consumidor na relação de consumo, não mereceria o mesmo tratamento.

NOTA:

[1] Trecho do Relatório da Comissão Mista: “Os números são conhecidos: figuramos na 109ª posição no Doing Bussines do Banco Mundial, na 150ª do ranking de liberdade econômica da Heritage Foundation, 144ª no do Fraser Institute e 123ª no do Cato Institute”.

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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