Pensão por morte e famílias simultâneas: monogamia deve ser critério para a proteção previdenciária?

*por Fábio Zambitte Ibrahim, doutor em Direito Público pela UERJ, professor adjunto de Direito Financeiro da UERJ e professor titular de Direito Previdenciário e Tributário do IBMEC e Luis Lopes Martins, doutorando em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário na UERJ

Imagem: Freepik

Em “O Veneno da Madrugada”, Gabriel García Márquez retrata o cotidiano de um pequeno povoado do interior da Colômbia na metade do século XX. Em uma das passagens, no meio do caos em razão dos crimes e intrigas que abalam o lugarejo, o pároco local, Padre Ángel, se orgulha de seu trabalho pela moralização da cidade:

Como lhes dizia, este é um povoado muito crente, muito observador das leis de Deus. Há 19 anos, quando me entregaram a paróquia, havia aqui onze concubinatos públicos de famílias importantes. Hoje só resta um, e espero que por pouco tempo.

[…]

Atravessamos um momento político difícil, mas a moral familiar vem se mantendo intacta.

Entre os concubinatos referidos pelo Padre Ángel, é provável que estejam incluídos alguns casos que permanecem, no mundo real, à margem da lei: as famílias simultâneas ou paralelas, isto é, quando um mesmo indivíduo compõe, como cônjuge ou companheiro, mais de um grupo familiar.

Ainda que tais vínculos familiares muitas vezes sejam alvo de repúdio social, legal e judicial [1], o fato é que eles existem em grande número na sociedade, o que torna indispensável a análise de seus efeitos jurídicos. O tema tem especial relevância para o direito das famílias e para o direito previdenciário, o que não significa, contudo, que ambos precisem ou devam discipliná-lo da mesma forma. Cada um desses dois campos do direito possui objetos próprios, e essas diferenças têm como consequência a possibilidade de distintas abordagens das famílias simultâneas.

 A partir do exemplo mencionado pelo Padre Ángel, imagine-se que César seja casado com Amaranta no povoado de Aracataca. Ocorre que César, comerciante, viaja a trabalho com frequência e, após anos na rota Aracataca/Macondo, passou a manter também uma relação de convivência com Mercedes nessa última cidade. Aqui não se trata de uma mera relação extraconjugal pontual ou de encontros amorosos recorrentes, mas sim de um verdadeiro ânimo de convivência familiar. César e Mercedes vivem assim durante vários anos, possuem filhos e são reconhecidos em Macondo como uma família. O que acontece quando César morre?

Longe de ser um problema exclusivo de um mundo fantástico, o debate sobre as implicações das famílias simultâneas está na pauta do dia e será apreciado pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos RE nº 883.168 (Tema 526) e RE nº 1.045.273 (Tema 529), ambos com repercussão geral e cuja discussão principal diz respeito às consequências previdenciárias dessas relações.

No direito civil brasileiro ainda predomina o entendimento de que a relação entre César e Mercedes não tem valor jurídico, por se tratar de mero concubinato (um termo que parece vir de um romance da década de 60, diga-se de passagem), nos termos do art. 1.727 do Código Civil [2].  Por isso, Mercedes não poderia, via de regra, pleitear direitos sucessórios ou, caso quisesse, deveria comprovar a ocorrência do chamado concubinato de boa-fé, isto é, de que Mercedes desconhecia o casamento de César com Amaranta [3].

O fato de a legislação civil não emprestar efeitos jurídicos ao concubinato é a fundamentação utilizada por muitos para concluir também pela impossibilidade de concessão de pensão por morte nesses casos, compreensão inclusive predominante nos tribunais superiores [4]. Mais estranho ainda é o posicionamento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à impossibilidade de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas, abrindo espaço para a interpretação de que deveria ser excluído o direito de ambas as pretendentes – uma espécie de decisão salomônica às avessas [5].

Ocorre que tais entendimentos partem de uma premissa, a nosso ver, equivocada: a de que é relevante a situação jurídica civil da união familiar para a análise do direito à proteção social.

Como pedagogicamente expõe o próprio termo, o direito das famílias tem como objeto tutelado as famílias, ou seja, seu objetivo é disciplinar juridicamente e proteger a família como instituição. O direito previdenciário, de forma bem diferente, tem outro objetivo: a proteção econômica e social de indivíduos vulneráveis.

É natural que a lógica que permeia relações previdenciárias seja díspar daquela das relações familiares do direito civil, especialmente no tocante à menor sujeição da matéria protetiva a valores morais ou prescritivos da estruturação familiar. Em outras palavras, quando o objeto da disciplina jurídica é a própria família, é mais compreensível que as normas legais sejam influenciadas por aspectos morais sobre o que deve ser a família (ressalvada a grande evolução sobre o tema nos últimos anos e as novas concepções sobre as formas de convivência abarcadas pelo conceito de família) [6].

Já no campo da proteção social, de forma oposta, a atuação exigível do Estado não advém da necessidade de proteção da família como instituição, mas sim dos ideais de bem-estar e justiça social, que resultam na obrigação de garantir amparo econômico mínimo aos que foram afligidos por eventos que podem prejudicar sua capacidade de manter a própria subsistência, como a morte de um dos responsáveis economicamente pelo grupo familiar. Ao se deparar com tal situação o direito previdenciário não se preocupa – ou não deveria se preocupar – com a moralidade da existência daquela estrutura familiar, mas apenas com o efetivo amparo das pessoas vulneráveis.

 É claro que existirá alguma interseção entre esses dois campos. Isso pode acontecer, por exemplo, porque a necessidade de proteção social é alterada conforme a sociedade e as famílias mudam, principalmente quando essas passam a ser menos capazes de prover segurança econômica para seus membros vulneráveis (até algumas décadas, o melhor plano de previdência era ter vários de filhos). Ou, ainda, porque alguns benefícios, especialmente a pensão por morte, partem justamente da premissa de que determinados membros do grupo familiar são economicamente dependentes de outros.

Ainda assim, a existência desses pontos de contato não significa que o campo da proteção social deva internalizar cegamente conceitos e dogmas do direito civil, mas sim utilizá-los apenas quando sejam instrumentos úteis e não conflitantes com seu objetivo final, a proteção econômica.

Não faltam exemplos que ilustram essa autonomia do direito previdenciário na definição de conceitos relacionados com o direito de família. Enquanto casais homoafetivos somente foram reconhecidos como entidades familiares pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 [7], já era admitido o direito à concessão de pensão por morte a companheiros homoafetivos, inclusive em âmbito administrativo, quase uma década antes [8]. Outro caso que ilustra a possibilidade de criação de conceito próprio para fins previdenciários é a figura do equiparado a filho, prevista na Lei de Benefícios desde 1991.

É exatamente por tal autonomia e por seguir lógica distinta do direito das famílias, que, no âmbito da legislação protetiva, companheira ou companheiro deve ser entendido como aquele que possui ânimo de convivência com um segurado, dividindo vida comum em busca de uma sociedade conjugal. São essas as características que ensejam a presunção de dependência econômica e implicam a necessidade de amparo estatal em caso de morte do segurado, pouco importando, em âmbito previdenciário, a existência de mero impedimento para contrair núpcias, se a companheira tinha ou não ciência do impedimento para o casamento, ou qualquer outra questão relacionada com a moralidade da relação ou com eventual pretensão de modelo familiar buscada pelo direito civil.

Precisa ser revertida a interpretação civilista do direito previdenciário predominante atualmente nos tribunais superiores em relação às famílias simultâneas. O núcleo duro desse ramo é a efetiva proteção daqueles que ficaram desamparados pela morte de seu companheiro, pouco importando aspectos formais civis ou mesmo morais da união entre essas pessoas.

Ainda que existam relevantes discussões atualmente sobre o tema, a legislação e a jurisprudência civilistas ainda mantêm um quê de Padre Ángel, parecendo estar mais preocupadas em mudar comportamentos observados na sociedade e prescrever um modelo familiar alinhado com a moral dominante. Submeter a proteção econômica e social de pessoas necessitadas a tais preceitos significaria a absurda conclusão de que somente aqueles em conformidade com essa moral têm certos direitos sociais.

REFERÊNCIAS

 [1] DIAS. Maria Berenice. Manual de direito das famílias: de acordo com o novo CPC. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2016. p. 280.

[2]Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.

[2] REsp 1754008/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/12/2018, DJe 01/03/2019

[3] RE 590779, Rel.  Ministro MARCO AURÉLIO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/02/2009, DJe-059 e AgRg no Ag 1424071/RO, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/08/2012, DJe 30/08/2012

[4] “Com efeito, a pedra de toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de relacionamento de fato duradouro, concorrentemente àquele que se pretende proteção jurídica, daí porque se mostra inviável o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Não fosse por isso, também não seria a separação de fato conditio sine qua non para o reconhecimento de união estável de pessoa casada. Em suma, se quando inexistente separação de fato – ou seja, havendo convivência duradoura – não se pode reconhecer a união estável de pessoa casada, também não é viável o reconhecimento de união estável concomitantemente à outra, em relação à qual restou comprovada a convivência duradoura, sob pena de conferir aos conviventes em união estável maiores direitos que aos cônjuges.” REsp 912.926/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 07/06/2011.

[5] Quanto ao tema, vale lembrar que a monogamia não deve ser entendida como uma princípio constitucional, mas como “regra restrita à proibição de múltiplas famílias”. Nesse sentido, Maria Berenice Dias afirma, de forma precisa, que “o Estado tem interesse na mantença da estrutura familiar, a ponto de proclamar que a família é a base da sociedade. Por isso, a monogamia sempre foi considerada função ordenadora da família. A monogamia não foi instituída em favor do amor. (…) Serve muito mais a questões patrimoniais, sucessórias e econômicas.

Ainda se esforça o legislador em não emprestar efeitos jurídicos às relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de casar, chamando-as de concubinato (CC 1.727). No entanto, pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional leva a resultados desastrosos. (…) Essa solução, que ainda predomina na doutrina e é aceita pela jurisprudência, além de chegar a um resultado de absoluta afronta à ética, se afasta do dogma maior de respeito à dignidade da pessoa humana.”

DIAS. Maria Berenice. Manual de direito das famílias: de acordo com o novo CPC. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2016. pp. 45/46.

[6] ADI 4277, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341 RTJ VOL-00219-01 PP-00212

[7] O INSS já reconhecia a união homoafetiva em decorrência da decisão judicial proferida no âmbito da Ação Civil Pública nº 2000.71.00.9347-0, pela 3ª Vara Federal de Porto Alegre/RS, mantida monocraticamente pela presidência do Supremo Tribunal Federal (Pet 1984, Relator(a): Min. PRESIDENTE, Decisão Proferida pelo(a) Ministro(a) MARCO AURÉLIO, julgado em 10/02/2003, publicado em DJ 20/02/2003 PP-00024).

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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