* Por Julia de Castro Tavares Braga, advogada, mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ

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Pode-se dizer que a concepção de um sistema multiportas começou a ser discutida em 1976, por Frank Sander, professor de Harvard. Sander, após uma reflexão acerca do Poder Judiciário norte-americano, chegou à conclusão que, devido ao elevado número de controvérsias que eram submetidas às cortes americanas, era inviável o julgamento de todas as causas de maneira “adequada e eficiente” [1].
Desta forma, após uma conferência no estado de Minnesota (EUA), desenvolveu-se a ideia de um sistema que, em oposição ao modelo tradicional de solução de litígios, onde há apenas uma opção – o Judiciário –, era necessária uma estrutura em que houvesse “múltiplas portas”, isto é, opções diversas para os litigantes solucionarem seus conflitos. Nesse sentido, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. afirmam que “nesta nova justiça, a solução judicial deixa de ter a primazia nos litígios que permitem a autocomposição e passa a ser ultima ratio, extrema ratio” [2].
Ainda de acordo com Sander, não haveria hierarquia entre os métodos. Seria necessário um mecanismo de “triagem” dos conflitos e que, após a passagem por esse procedimento, onde se analisaria as vantagens e desvantagens de cada método, seria possível determinar qual o mais adequado para a controvérsia em questão [3].
Vale mencionar que o sistema multiportas está diretamente relacionado com a terceira onda renovatória [4], termo dado pelo jurista Mauro Cappelleti às medidas adotadas visando a superação dos obstáculos ao acesso à justiça. Essa terceira onda, para Cappelleti, surgiu em virtude da inadequação, em determinados casos, dos meios ordinários de solução de controvérsias. Por conseguinte, fez-se necessária a busca por “reais alternativas (stricto sensu) aos juízes ordinários e aos procedimentos usuais” [5].
Diante da concepção do sistema multiportas desenvolvido por Sander, largamente aplicado nos EUA [6] e em outros países, há de se indagar: Como a nossa justiça do trabalho vem lidando com os novos métodos adequados de resolução de disputas trazidos pela Reforma Trabalhista, mais especificamente, a arbitragem trabalhista?
Será que essa reação refratária e quase que automática contrária à arbitragem trabalhista, que vem sendo adotada pelo TST [7] desde a entrada em vigor da Reforma Trabalhista, caminha em compasso com a sociedade moderna?
Faz sentido, nos dias de hoje, e considerando a evolução nas relações laborais, que todos os contribuintes brasileiros tenham que arcar com os custos do Poder Judiciário [8] em relação às ações trabalhistas ajuizadas por altos empregados, os quais, buscam, muitas vezes, o recebimento de indenizações milionárias decorrentes de planos de bonificações e/ou compensações financeiras de alta monta?
O fato é que, a despeito do olhar desconfiado e desinteressado dos magistrados trabalhistas, a Arbitragem, instituída no Brasil há mais de vinte anos através da Lei n° 9.307/96 e consagrada no direito brasileiro por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) do início dos anos 2000, cresceu e floresceu até ganhar estrondosa aceitação e reconhecimento. No universo das pessoas que conhecem tecnicamente o instituto da Arbitragem, é unânime a percepção de que se trata de opção idônea para solucionar controvérsias com rapidez e pacificar relações, além de que é dotada da mesma integridade que possui o sistema de resolução de conflitos pela jurisdição estatal [9].
Não há óbice sobre o relevante e fundamental papel desempenhado pela Justiça do Trabalho em âmbito nacional. Mas sua atuação deve ser destinada e focalizada àqueles trabalhadores verdadeiramente hipossuficientes, que dependem da Justiça do Trabalho para fazerem valer seus direitos básicos, tão ordinariamente sonegados e suprimidos em nosso país. Ao mesmo tempo, a arbitragem trabalhista deve ser restrita aos trabalhadores hipersuficientes que tenham autonomia na condução de suas atividades. Presumir o vício de consentimento desses trabalhadores é violar frontalmente os princípios da liberdade, da autonomia da vontade e, principalmente, da legalidade.
A Lei 13.467/2017, com a introdução do parágrafo único do artigo 444 da CLT, conferiu aos empregados enquadrados na categoria de “hipersuficientes” a possibilidade de livre negociação das cláusulas de seus contratos de trabalho, nos limites do artigo 611-A da CLT, inclusive com preponderância sobre os instrumentos coletivos e, ainda, sobre a lei.
Assim, convém aos profissionais do direito conhecerem o sistema que regula e abriga a arbitragem, assim como os seus procedimentos, suas técnicas e principalmente as suas vantagens. Isso tudo para que a discussão a respeito do tema ganhe a densidade própria do debate jurídico e se desapegue da visão reducionista, marcadamente superficial, na qual incidiu até aqui uma boa parte da doutrina e da jurisprudência.
Muitos são os preconceitos que permeiam o instituto, especialmente no âmbito do Direito do Trabalho. Por isso, é necessário fazer uma análise crítica desses pré-julgamentos, para que possamos desconstruí-los.
É frequente a ideia de que o empregador é o único responsável pela escolha do árbitro e que, por conseguinte, a sentença será tendenciosa à empresa. Todavia, para que o árbitro seja indicado, na verdade, deve haver um consenso entre as partes. Não estando em harmonia, caso as partes tenham optado por uma arbitragem institucional, a Câmara Arbitral será responsável pela indicação do árbitro. Sendo um tribunal colegiado, cada parte escolherá um árbitro e estes irão indicar um terceiro.
Outra crítica muito comum é a de que os árbitros, por serem escolhidos pelas partes, serão parciais. Não tem fundamento, contudo, tal argumento, visto que os árbitros devem se declarar independentes e imparciais para atuar no caso. Sua especialidade no assunto não torna sua decisão questionável, mas, pelo contrário, faz com que as sentenças sejam mais justas e técnicas.
É habitual, também, o entendimento de que a arbitragem não é vantajosa para o empregado, tendo em vista que a Justiça do Trabalho, hoje, é muito favorável aos trabalhadores. Isso, na verdade, não se sustenta, pois a justiça trabalhista têm sido consideravelmente rigorosa com trabalhadores de alto escalão, que são, geralmente, aqueles que podem optar pela via arbitral.
Há quem defenda, ainda, que a expansão da arbitragem iria pôr fim à Justiça do Trabalho. Isso, porém, não nos parece nada razoável, posto que o número de trabalhadores aptos a pactuar a cláusula compromissória, isto é, aqueles cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social (aproximadamente R$12.000,00 [10]), é ínfimo comparado ao total de empregados no país. Segundo o IBGE, no período de 2018 a fevereiro de 2019, a renda mensal média dos trabalhadores foi cerca de R$2.200,00, o que deixa explícito que a via arbitral é extremamente restrita para os trabalhadores.
Por fim, e talvez o mito mais aferrado na sociedade a respeito da arbitragem, é a crença de que o procedimento é extremamente dispendioso. É bem verdade que o instituto, principalmente na área comercial, não é tão acessível. Porém, ao trazer para a seara trabalhista, justamente pelas particularidades das relações trabalhistas, as instituições, como já feito por muitas delas [11], deverão adaptar as tabelas de custas, tornando o acesso à via arbitral uma possibilidade.
Não é fácil navegar contra a maré. Nos dias de maior nebulosidade, vale recorrer à sabedoria e experiência de quem já navegou nessas águas e passou pelos caminhos mais tortuosos. Ao ser indagado sobre a visão dos advogados e magistrados na época da promulgação da lei de arbitragem comercial em 1996, Carlos Alberto Carmona [12] assim se manifestou:
Alguns magistrados manifestaram-se radicalmente contra a Lei na época em que foi promulgada. Diziam que não deveriam dividir a jurisdição, que não havia necessidade disso, que o Brasil ia bem só com o Poder Judiciário…não entenderam que não haveria uma concorrência. Na verdade, estava sendo aberto um outro campo para a solução de litígios, litígios que possivelmente não seriam resolvidos no Brasil se não existisse a Lei de Arbitragem. É o mesmo fenômeno antevisto por Kazuo Watanabe quando foram inaugurados os juizados especiais de pequenas causas em 1984, antecessor dos juizados especiais cíveis e criminais. O prof. Kazuo Watanabe dizia que muitas causas que normalmente não eram submetidas ao Poder Judiciário passariam a afluir por conta desta nova porta de acesso. E assim foi. O Poder Judiciário não dividiu nada, não aliviou a sobrecarga do Poder Judiciário; apenas abriu mais uma porta, mais uma via, para a solução de litígios (…). Não foi nada fácil convencer os juízes naqueles distantes anos 90. Hoje, tudo isso é óbvio. Agora tem a carta arbitral e ficou fácil entender o mecanismo de cooperação e coordenação.
Ao contrário do que se argumenta, a arbitragem é uma porta de entrada para muitos profissionais hipersuficientes que deixam de ingressar no Poder Judiciário pelo medo de exposição e futura retaliação. Dentre outras vantagens deste instituto (como especialização, celeridade e autonomia na escolha dos procedimentos), a confidencialidade, intrínseca aos procedimentos arbitrais, e o ambiente menos belicoso no qual transcorrem as arbitragens, garantem maior tranquilidade e conforto a tais indivíduos e, consequentemente, o mais amplo acesso à justiça.
[1] NOGUEIRA, Gustavo Santana; NOGUEIRA, Suzane de Almeida Pimentel. O sistema de múltiplas portas e o acesso à justiça no Brasil: perspectivas a partir do novo código de processo civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 276, fev. 2018, p. 505.
[2] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Justiça multiportas e tutela constitucional adequada: autocomposição em direitos coletivos. Civil Procedure Review, v. 7, nº 3, set./dez. 2016, p. 62. Disponível em: < http://www.civilprocedurereview.com/?option=com_content&view=article&id=337:-justica-multiportas-e-tutela-constitucional-adequada-autocomposicao-em-direitos-coletivos-fredie-didier-jr-and-hermes-zaneti-jr&catid=92:pdf-revista-n3-2016>. Acesso em: 27/08/2019.
[3] NOGUEIRA, Gustavo Santana; NOGUEIRA, Suzane de Almeida Pimentel. O sistema de múltiplas portas e o acesso à justiça no Brasil: perspectivas a partir do novo código de processo civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 276, fev. 2018, p. 507.
[4] De acordo com Cappelletti, a primeira onda (ou obstáculo) é o econômico, que impede muitas pessoas de terem um acesso adequado à justiça. O segundo obstáculo, para o autor, seria organizacional, que torna ineficiente a proteção judicial. (CAPPELLETTI, Mauro. Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 74, abr./jun. 1994, p. 83).
[5] Ibid. p. 86.
[6] A American Bar Association, assim se manifesta acerca do sistema multiportas amplamente praticado para resolução das disputas jurídicas nos Estados Unidos da América:
The name “Multi-Door” comes from the multi-door courthouse concept, which envisions one courthouse with multiple dispute resolution doors or programs. Cases are referred through the appropriate door for resolution. The goals of a multi-door approach are to provide citizens with easy access to justice, reduce delay, and provide links to related services, making more options available through which disputes can be resolved.
Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/dispute_resolution/resources/DisputeResolutionProcesses/multi-door_program/. Acesso em 27/08/2019
[7] TST – Processo: AIRR – 11289-92.2013.5.01.0042 Data de Julgamento: 06/02/2019, Relator Ministro: Breno Medeiros, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 08/02/2019
TST – Processo: AIRR – 2810-32.2012.5.03.0029 Data de Julgamento: 07/02/2018, Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 09/02/2018
[8] De acordo com o Relatório anual “Justiça em Números”, apresentado pelo CNJ no ano de 2018 referente, portanto, ao ano de 2017, as despesas totais do Poder Judiciário somaram R$ 90,8 bilhões. Desse total, R$ 18,2 bilhões foram destinados ao custeio da Justiça do Trabalho, o que representa o percentual de aproximadamente 20%. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/44b7368ec6f888b383f6c3de40c32167.pdf. Acesso em 26/08/2019.
[9] A título exemplificativo, recentemente, o Jornal Valor Econômico veiculou matéria, onde se discutia justamente a eficiência da arbitragem quando comparada à jurisdição estatal e os ganhos econômicos para ambas as partes com a celebração de compromisso arbitral, após o litígio no Judiciário perdurar por 18 anos. O Termo de arbitragem foi assinado em setembro de 2017 e, 15 meses depois da assinatura do Termo, foi proferida sentença que poderá representar mais de 2,5 bilhões de ganho para a Administração Pública. Disponível em: https://mobile.valor.com.br/empresas/6053943/arbitragem-condena-libra-pagar-codesp. Acesso em 26/08/2019.
[10] Valor equivalente ao dobro do teto previdenciário em vigor, de R$ 5.839,45, conforme Portaria do Ministério da Fazenda, publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 11/01/2019.
[11] À título de ilustração, o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), em seu Protocolo de Arbitragem Trabalhista, já adaptou as custas para este tipo de arbitragem. Disponível em: <http://site1379424603.hospedagemdesites.ws/protocolo_arbitragem_trabalhista>. Acesso em: 27/08/2019.
[12] Co-autor da Lei de Arbitragem Brasileira e Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente leciona teoria geral do processo e direito processual civil. Trecho retirado de entrevista concedida por Carmona in: Memórias do desenvolvimento da arbitragem no Brasil. Organizado por Flávia Bittar Neves, Francisco Maia Neto, Joaquim de Paiva Muniz e Ricardo Ranzolin – Brasília: OAB, Conselho Federal, 2018. OAB Ed. 2018, p. 36-37.