* por Henrique Figueiredo de Lima, advogado e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O dia 06 de setembro de 2019 foi marcado por um grave episódio de censura e homofobia no Brasil. Nesta data, o prefeito do município do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, determinou que fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública comparecessem à Bienal do Livro na capital carioca para apreender materiais que apresentassem conteúdo impróprio ou inadequado para crianças e adolescentes. Isso porque, no dia anterior, o prefeito compareceu ao evento e se estarreceu com ilustração presente na HQ “Vingadores, a cruzada das crianças” que apresentava beijo entre o casal homoafetivo Wiccano e Hulkling. Em vídeo postado em sua conta na rede social twitter, Crivella declarou que tais materiais deveriam ser embalados em plásticos pretos com indicação do conteúdo presente nas obras [1].
A atitude do político gerou polêmica para além da comunidade literária, comovendo uma multiplicidade de indivíduos que adquiriram os exemplares restantes, em um ato de resistência contra a prática de censura e intolerância homofóbica. Ocorre que este episódio não se configura como o único ato deste cunho praticado por um político brasileiro hodiernamente. De acordo com o jornal El País, três dias antes do ocorrido, João Dória, governador de São Paulo, determinou o recolhimento de apostila didática nas escolas estaduais de São Paulo que versava sobre identidade de gênero e orientação sexual, sob a alegação de que se tratava de material que visava a implementação de “ideologia de gênero” nas escolas [2].
Estes são apenas alguns exemplos de casos similares que permeiam o Brasil na atualidade, sendo certo que as práticas de intolerância contra quaisquer grupos sociais merecem atenção constante, mormente pelo fato de o atual chefe do poder executivo atacar com habitualidade as minorias em seus discursos, especialmente a população LGBTQ+ [3], as mulheres, as negras e os negros [4]. Destarte, a constância de declarações e atuações contra as minorias evidencia a urgência da reflexão acerca das práticas de resistência, que continuam vivas e se reinventam de acordo com as estratégias de confronto decorrentes das oportunidades e restrições no momento de sua eclosão [5].
Diante dos mencionados episódios que marcam o discurso e a prática de políticos brasileiros, se torna necessário revisitar a greve geral eclodida em Porto Rico no ano de 2019. A reflexão não se propõe a transplantar as experiências porto-riquenhas ao Brasil, mas sim ponderar acerca das possibilidades de ação coletiva contra práticas de intolerância, em especial quanto aos limites e possibilidades dos usos da greve em tempos de renovação e reinvenção das estratégias conflitivas.
Os protestos que iniciaram a greve geral de Porto Rico foram deflagrados no dia 13 de julho de 2019, em virtude de o jornal porto-riquenho “El Nuevo Dia” ter liberado publicamente uma série de conversas entre o governador de Porto Rico, Ricardo Rosselló, e onze de seus funcionários no Telegram. Neste vazamento, que culminou na revolta da população com movimentos reivindicatórios pela renúncia de Rosselló, foram expostos diálogos de teor homofóbico e misógino entre o político e seus funcionários [6].
Não obstante o governo já estivesse estremecido por escândalos de corrupção, a divulgação das conversas foi o fator essencial para a indignação popular que ocasionou a greve geral, com diversas paralisações de serviços em Porto Rico e o envolvimento de celebridades locais e internacionais [7]. Após grande adesão da população, o governador de Porto Rico se propôs a negociar com os insurgentes para que encerrassem os protestos, mediante declaração de não candidatura na eleição seguinte. No entanto os grevistas não aceitaram a proposta do governante e persistiram com as suas paralisações, que tiveram importante protagonismo das mulheres [8] e apenas se encerraram no dia 25 de julho de 2019, após Rosselló declarar a sua renúncia.
O movimento porto-riquenho demonstra que ainda que novas práticas de ação coletiva se encontrem nos repertórios de confronto atuais [9], a greve se denota como uma das formas mais eficientes para a obtenção de determinado objetivo. Particularmente por representar um ato de resistência que utiliza da lógica do sistema capitalista e visa causar prejuízos ao capital, mediante alteração da forma de prestação de serviços ou sua paralisação, sendo um instrumento contundente para externalizar conflitos coletivos quando combinada com atos de protestos públicos, sobretudo pela racionalidade do prejuízo, que reflete na urgência da tomada de decisões por parte dos sujeitos alvos das manifestações.
Para além destas questões, o caso de Porto Rico ainda demonstra que a greve não se limita ao contexto operário, nem se restringe a reivindicações vinculadas ao contrato de trabalho passíveis de serem negociadas pelos empregadores. Como se apreende, os cidadãos porto-riquenhos paralisaram os serviços para reivindicar a renúncia de seu governante em virtude de declarações homofóbicas, misóginas e denúncias de corrupção, alcançando o seu objetivo após a persistência e manutenção dos atos reivindicatórios formulados em laços de solidariedade, sendo um exemplo recente da denominada “greve política” pelo ordenamento jurídico.
A doutrina da greve política, corriqueiramente aplicada no Brasil, pode ser compreendida como uma das formas de controle da ação coletiva, por diferenciar os protestos “políticos” dos “trabalhistas” [10], aplicando penalidades às entidades sindicais envolvidas em determinadas formas de resistência [11]. Ocorre que este binômio nega que todo e qualquer ato vinculado a um conflito grevista é, por si, um ato político, não sendo possível falar em uma greve “não-política”. Esta dicotomia adveio com o intento de impedir a deflagração de paredes contra os poderes constituídos e cujas reivindicações não se restringissem ao contrato de trabalho, por compreender nestes movimentos um caráter de subversão à ordem. Esta forma de diferenciação e punição do conflito vem sendo aplicada por tribunais brasileiros a despeito do ordenamento internacional, que proíbe apenas a greve “essencialmente política”, qual seja aquela movida com o intento de afastar algum governo, à exemplo da parede ora analisada[12].
No entanto, ainda que a legalidade repressiva [13] alicerce o ordenamento jurídico e a mentalidade dos magistrados, as greves se evidenciam como um fator de desafio e enfrentamento ao direito, existindo cenários em que a persistência das manifestações culminaram no reconhecimento jurídico do confronto inicialmente lido como abusivo e na obtenção de novos direitos e melhoria daqueles já existentes [14]. É certo que para o presente momento não foram obtidos dados acerca de processos judiciais que questionaram o conflito porto-riquenho, no entanto este é um exemplo notório de que a greve se afirma como um fato social irresistível perante o direito, o desafia e o questiona – inclusive contra o ordenamento internacional, demonstrando que a força de um ato coletivo é capaz de obter os objetivos pretendidos ainda que seja alvo de repressão.
Para além de questões jurídicas, a greve geral de Porto Rico ainda representa uma experiência de aprendizado e de lições aos demais movimentos, sejam eles trabalhistas ou não, uma vez que reafirma na parede os seus sentidos de ataque, defesa e inovação. Por tais razões, ainda que o mundo do trabalho e os trabalhadores tenham vivenciado mudanças nos últimos anos, em virtude dos processos de reestruturação produtiva e de afirmação de identidades, que culminaram na reinvenção das estratégias de confronto, a greve se demonstra um meio eficaz para o enfrentamento coletivo e obtenção de reivindicações, sendo inclusive um instrumento de combate a práticas de intolerância e um mecanismo eficaz para o alcance de resultados, uma vez que a racionalidade do prejuízo repercute na lógica do capital e reflete na urgência da tomada de decisões.
[1] https://twitter.com/MCrivella/status/1169752491178831873;
[2]https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/06/politica/1567794692_253126.html
[4]https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/06/politica/1538859277_033603.html
[5] TARROW, S. O Poder em movimento. São Paulo: Vozes, 2009
[9] MCADAM, D.; TARROW, S.; TILLY, C. Para mapear o confronto político. Lua Nova, nº 76, São Paulo, 2009. Pp. 11-48.
[10] SILVA, S. G. C. L. da. Relações coletivas de trabalho: configurações institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008.
[11] PAIXÃO, C. O.; LOURENÇO FILHO, R. M. Greve como prática social: possibilidades de reconstrução do conceito a partir da Constituição de 1988. In: Adriana Goulart de Sena; Gabriela Neves Delgado; Raquel Portugal Nunes. (Org.). Dignidade humana e inclusão social: caminhos para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 2010, v., p. 408-424.
[12] BARBATO, M. R.; COSTA, R. J. C. A reforma trabalhista de 2017 e a justiça do trabalho: ponderações sobre o caráter político das greves nacionais à luz dos princípios da OIT. In: BARBATO, M. R. (Org.). Lutar para quê? Das greves às ocupações: Um debate contemporâneo sobre o direito de resistência. Belo Horizonte: RTM, 2018, p. 85-106.
[13] SIQUEIRA NETO, J. F. Contrato coletivo de trabalho: perspectiva de rompimento com a legalidade repressiva. São Paulo: LTr, 1991
[14] VIANA, M. T. Da greve ao boicote: os vários significados e as novas possibilidades das lutas operárias. Revista do Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região, Belo Horizonte, v. 49, n. 79, p. 101-121, jan./jun. 2009
Sensacional. A greve é uma das formas de desobediência civil mais seguras para que a classe trabalhadora conquiste direitos não só trabalhistas, mas também sociais.
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