* por Victor Tavares Tito de Souza, advogado

O uso do banheiro por transexual é um tema delicado e controverso, seja no âmbito jurídico, religioso, social ou político, devendo ser analisado sempre com cautela e à luz dos direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal de 88, principalmente os direitos à honra e à imagem (inciso X, art. 5º, da CF).
Contudo, antes de ingressarmos no tema na perspectiva do mundo do Direito e especificamente na seara trabalhista, importante compreender o significado de transexualidade, assim como os conceitos de orientação sexual, identidade de gênero e sexo.
Transexual é a condição do indivíduo cuja identidade de gênero difere daquela designada no nascimento, ou seja, a pessoa pode se sentir que pertence ao gênero oposto, a ambos ou a nenhum dos dois gêneros. A pessoa transexual pode procurar fazer a transição social para outro gênero, através da forma como se apresenta para a sociedade, ou através de intervenções no corpo. [1]
A orientação sexual é a expressão individual da sexualidade, o objeto da atração sexual e afetiva do indivíduo, dividindo-se em heterossexual, homossexual, bissexual, etc. A identidade de gênero é a identificação do indivíduo com o sexo, como a pessoa se sente ao nascer (homem ou mulher), independente do sexo biológico. Sexo, por sua vez, é uma questão biológica, relaciona-se com a formação genital e os órgãos reprodutivos do indivíduo.
A pessoa transexual não necessariamente precisa passar por procedimentos cirúrgicos para ter sua identidade definida como homem ou mulher trans. A transexualidade refere-se à condição do indivíduo que possui uma identidade de gênero diferente da designada ao nascimento, tendo o desejo de viver e ser aceito como sendo do sexo oposto.
Dito isso, passamos a analisar a questão do transexual em relação ao registro civil, quando o indivíduo formaliza sua identidade de gênero, posteriormente, as decisões proferidas no mundo do Direito que envolvem a utilização de banheiro por pessoas trans, e, por fim, a utilização do banheiro especificamente no ambiente de trabalho, foco do artigo em questão.
Em maio de 2017, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento no sentido de que os transexuais teriam direito à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil, não estando condicionados à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização (REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/5/2017). [2]
Em decisão recente, proferida no dia 1º de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), na mesma linha do posicionamento do STJ mencionado acima, também autorizou, por unanimidade, que pessoas trans pudessem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que precisassem se submeter a cirurgia ou necessitassem de autorização judicial. Foram invocados pelos ministros os princípios do respeito à dignidade da pessoa humana, da autodeterminação e da autoafirmação. [3]
Até recentemente, para mudar a certidão de nascimento, era preciso mover uma ação judicial. Porém, em junho de 2018, em convergência com as decisões tomadas pelo STJ e pelo Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento 73/2018, que definiu regras para que as pessoas trans pudessem alterar seu nome e gênero em suas certidões de nascimento ou casamento. [4]
O documento considera legislações internacionais de direitos humanos como o Pacto de San Jose da Costa Rica, que prevê o respeito ao direito ao nome, ao reconhecimento da personalidade jurídica, à liberdade pessoal e à honra e à dignidade, conceitos próximos aos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal.
PROVIMENTO Nº 73, DE 28 DE JUNHO DE 2018.
Art. 2º Toda pessoa maior de 18 anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida.
[…]
§ 1º O atendimento do pedido apresentado ao registrador independe de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico.
Em relação ao tema da utilização de banheiros, o voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, ao se manifestar sobre a questão do tratamento aos transexuais no Recurso Extraordinário 845.779, ainda pendente de julgamento, deixou claro que, em respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e ao princípio democrático, devem ser respeitados os direitos dos transexuais de serem tratados pela forma como se apresentam, inclusive para usar banheiros públicos. [5]
Na demanda em tela, a autora, transexual, havia sido impedida por funcionários de um shopping center de utilizar o banheiro feminino do estabelecimento, tendo sido abordada de maneira vexatória.
Em primeiro grau, a sentença julgou procedente o pedido de danos morais e condenou a ré ao pagamento de indenização no valor de 15 (quinze) mil reais. A empresa recorreu e o tribunal estadual reformou a sentença para excluir a condenação da empresa, e, agora, o recurso da autora encontra-se pendente de julgamento no STF, que conta com 2 votos a favor do uso do banheiro feminino por transgênero identificado como mulher.
No processo de nº 033/1.14.0000543-4, que corre perante a 2ª Vara Cível de São Leopoldo – RS, a autora, transexual, moveu ação de indenização por danos morais em face de um Clube, eis que teria sido obrigado a adquirir ingresso masculino e teria sido ainda constrangida no interior do estabelecimento por ter utilizado o banheiro feminino[6]. Em razão do constrangimento e humilhação por que passou, o clube foi condenado ao pagamento de 8 (oito) mil reais, tendo a decisão entendido que estava evidenciado o preconceito e a violação à honra e à dignidade da autora, ofendida em razão de sua condição de transexual. A decisão foi mantida pela 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No caso, foi utilizado como fundamentação o voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso no âmbito do Recurso Extraordinário nº 845.779, já mencionado acima.
No âmbito trabalhista também já há decisões que abordam o tema. Uma empregada trans que foi orientada a utilizar o banheiro unissex, também destinado aos cadeirantes, moveu reclamação trabalhista em face da empregadora (Processo nº 0003365-15.2013.5.02.00389), que culminou na condenação da empresa ao pagamento de indenização por danos morais no valor de 20 (vinte) mil reais[7]. No referido caso, os demais empregados (tanto mulheres quanto homens), através de abaixo assinados, manifestaram-se contra a utilização dos banheiros masculinos/femininos pela empregada trans. O magistrado, entretanto, ponderou que não houve esforço da empresa em orientar e esclarecer seus empregados, zelando para que todos respeitassem a condição de transexual da reclamante. Entendeu, ainda, que a orientação para que a empregada utilizasse o banheiro unissex não teria colaborado com a inserção desta no ambiente de trabalho, mas sim contribuído para aumentar a discriminação em relação à sua pessoa. A decisão foi integralmente mantida pelo Tribunal Regional.
Uma empresa também foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais no valor de 8 (oito) mil reais à empregada trans, no processo de nº 0102013-24.2017.5.01.0036, diante da negativa da empregadora em reconhecer seu nome social e por não ter proporcionado um ambiente adequado de vestiário, uma vez que a empregada era obrigada a se trocar no almoxarifado[8]. A magistrada levou em consideração o direito da trabalhadora de ser respeitada na sua dignidade humana e nos seus direitos de personalidade, condenando a atitude do empregador de constranger a trabalhadora e privá-la da sua integridade no ambiente de trabalho. O Tribunal Regional manteve a decisão.
Em que pese ainda não haver muitos precedentes na esfera trabalhista, as decisões até então proferidas demonstram um grande avanço do Judiciário Brasileiro no que tange à proteção dos direitos das pessoas trans. O princípio da dignidade da pessoa humana e a necessidade de proteção das minorias são os grandes pilares utilizados para pacificação dos conflitos judiciais existentes que envolvem tais indivíduos.
O respeito à identidade de gênero deve prevalecer em todos os ambientes, seja nos locais públicos ou privados. As empresas, portanto, precisam realizar um trabalho de conscientização junto aos seus colaboradores, gerando um local de labor inclusivo e sem discriminação.
Como se depreende das recentes decisões proferidas, ao transexual é dado o direito a optar pelo banheiro conforme sua identidade de gênero, sendo a negativa passível de condenação da empresa em indenização por danos morais. Inclusive, as fundamentações são semelhantes no sentido de que as empresas têm obrigação de orientar seus demais empregados, a fim de evitar comportamentos discriminatórios, realizando, ainda, um trabalho de conscientização geral de forma a garantir a harmonia e o respeito dentro do ambiente laboral.
REFERÊNCIAS
[1] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Transexualidade
[2] Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/31851/registro-civil.pdf/a49ed003-f1ef-48ae-8840-dddb1c06ed6d?version=1.8
[3] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-01/stf-autoriza-trans-mudar-nome-cirurgia-ou-decisao-judicial
[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-29/cnj-regulamenta-alteracoes-nome-sexo-registro-transexuais
[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/voto-ministro-barroso-stf-questao.pdf
[6] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/sentenca-transexual-direito-tratado.pdf
[7] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-31/empresa-indenizara-transexual-obrigada-usar-banheiro-deficiente
[8] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI308670,31047-Transgenero+que+se+recusou+a+trabalhar+por+ter+nome+social+ignorado