* por Carolina Gagliano, socióloga, técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Vivemos um paradoxo neste início de século XXI. Ao mesmo tempo em que a informação está mais acessível, estamos mais suscetíveis a sermos enganados pelas fake news, ou notícias falsas no bom e velho português.
A despeito de evidências, dados e até mesmo fatos, algumas pessoas parecem escolher no que querem ou não acreditar. Esse fenômeno, conhecido como pós-verdade, foi definido pelo Dicionário Oxford como um “substantivo relativo a circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” [1].
Segundo Christian Dunker [2], a mobilidade social, a expansão do consumo e a linguagem digital, ao expandir o acesso à informação, também redefinem o sistema de distribuição dos saberes. Toda intelectualidade é contestada. Ao perceber que a ciência, por exemplo, pode ter diferentes posições igualmente válidas sobre determinados problemas, outras ideias também são levadas em consideração. Afinal, se diferentes ideias são aceitas pela ciência, por que outras são descartadas? Esse questionamento tem se materializado na defesa de ideias consideradas até pouco tempo ultrapassadas, como a Sociedade da Terra Plana e os Movimentos Antivacina.
Não somente a ciência, mas a imprensa e mesmo o Judiciário – enquanto mediadores simbólicos da palavra – todos têm sua reputação e credibilidade fragilizadas. Essa combinação de notícias falsas em meio a uma modernidade tomada pela pós-verdade e pelo anti-intelecutalismo pode ser um duro golpe para as instituições democráticas.
Os impactos já são sentidos, em maior ou menor intensidade, em eleições, referendos e plebiscitos disputados mundo afora. O Brexit [3] e a vitória de Donald Trump na disputa pela Casa Branca, ambos em 2016, são apenas dois exemplos internacionais. Nos dois casos as campanhas foram marcadas pela disseminação de informações falsas, mas com forte apelo emocional, “disparadas” por pessoas conhecidas através de suas redes sociais e, logo, aparentemente mais confiáveis aos olhos dos receptores. Essas mensagens direcionadas e impulsionadas por algoritmos (comandos lógicos que estruturam o funcionamento de programas de computador) buscam a maior quantidade de retorno para seus anunciantes (ou seja, quem paga por eles) e influenciaram diretamente os resultados dos pleitos.
Escolhas baseadas em manipulação da opinião pública com fins eleitorais colocam em questão não só a definição como também a qualidade das democracias. Pressupõe-se que nesses regimes os eleitores sejam livres para escolher as propostas que julguem mais adequadas, baseados em fatos reais e dados concretos, sem qualquer tipo de coerção ou adulteração da realidade.
Se ritos democráticos são contaminados pela desinformação, por consequência, as políticas públicas também o são. Não poderia ser diferente; afinal, como nos ensina Thomas Dye [4], políticas públicas são tudo aquilo que o governo escolhe fazer ou não fazer. Com toda a crítica que possa ser feita, esses governos foram legalmente eleitos, e possuem um projeto relativamente definido por seus apoiadores, ainda que não tão bem explicitado aos seus eleitores.
No caso da produção e disseminação de dados e informações com método e rigor científicos no Brasil – foco deste texto – podemos citar algumas das medidas já adotadas como reflexo dessas novas políticas públicas permeadas de um aspecto antidemocrático.
Desde abril de 2019, estudantes de graduação e pós-graduação de todo o país têm lidado com cortes nas bolsas de pesquisa ofertadas pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) [5]. Essas medidas, que culminaram, até o momento, em três manifestações em defesa da educação, impactam toda a produção científica brasileira, que é feita principalmente nas universidades públicas [6].
Outro caso de desprezo à produção de dados – talvez o mais emblemático – ocorreu entre julho e agosto. Numa coletiva de imprensa a respeito do aumento do desmatamento na Amazônia, o presidente da República afirmou que os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) – instituição do governo federal, diga-se de passagem – seriam mentirosos e que o presidente da instituição – Ricardo Galvão – estaria “a serviço de alguma ONG”. Após réplicas de Galvão na grande imprensa, o imbróglio terminou com sua exoneração e a nomeação de um novo presidente para o órgão. [7]
Em relação às informações que subsidiam as políticas de trabalho e previdência, a situação não é menos desoladora. O Censo 2020 está ameaçado com cortes de mais de um quarto no orçamento destinado ao levantamento dos dados, o que afeta diretamente a quantidade de perguntas contidas nos questionários. Some-se a isso a redução dos quadros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), especialmente por aposentadorias no corpo técnico, e sem qualquer previsão de concurso público nos próximos anos. Todos esses fatores colocam lacunas na principal fonte de dados a respeito das condições de vida, moradia e trabalho no Brasil. Há quem fale em um “apagão estatístico”, a depender de como se desenrolará o Censo 2020 [8].
Em fevereiro de 2019 o Ministro da Economia sugeriu a venda de prédios da instituição para a realização do Censo [9]. Segundo o Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE (ASSIBGE) o Ministro ainda teria dito que “se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber” [10].
Não se sabe ao certo quais são as coisas que o Ministro não quer saber, mas para as políticas de trabalho e previdência, citaremos apenas dois dos possíveis impactos da redução do Censo. Um está relacionado às perdas das informações sobre rendimento dos moradores do domicílio e o outro, à quantidade de horas trabalhadas por semana.
Se mantida apenas a questão sobre a renda do chefe do domicílio, desconsiderando a dos outros moradores, o cálculo dos domicílios em situação de extrema pobreza fica inviabilizado [11], o que impacta políticas de seguridade social como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) [12] pago pelo INSS aos idosos a partir de 65 anos com baixa renda. Sem a informação sobre a quantidade de horas trabalhadas por semana, num contexto pós-reforma trabalhista, resta ainda mais difícil entender a dinâmica dos novos contratos de trabalho, como o intermitente, por exemplo.
Como se o exposto até o momento não fosse o suficiente, recentemente economistas da UNICAMP publicaram nota intitulada “A falsificação nas contas oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime Geral de Previdência Social” [13]. Através da Lei de Acesso à Informações (LAI), os pesquisadores tiveram acesso aos cálculos oficiais do Ministério da Economia sobre a Reforma da Previdência, até então em sigilo [14].
A partir de um “encontro de contas”, os pesquisadores descobriram que “os cálculos manipulam os dados sem respeitar a lei e inflam o custo fiscal das aposentadorias atuais para justificar a reforma e exagerar a economia fiscal e o impacto positivo (falso) sobre a redução da desigualdade da Nova Previdência”. Os pesquisadores chegam a falar em “indícios de falsificação ou, no mínimo, incompetência inexplicável”. Em última instância, a imprensa, a opinião pública e talvez até o próprio Congresso estão tratando o assunto a partir de falsas premissas, o que pode levar a consequências nefastas para muitas famílias brasileiras.
Em suma, decidir com base em dados não parece ser prioridade na atual agenda governamental. As consequências disso podem ser as mais graves possíveis. Pode-se pensar em ao menos duas possibilidades. A primeira é ignorar problemas que afligem centenas de milhares de brasileiros por falta de informação disponível. Parafraseando o ditado popular, o que os olhos não veem a opinião pública não reage e o Estado não se move para resolver. A segunda, tão terrível quanto a primeira, é decidir sobre bases falsas. Tomar decisões erradas em políticas públicas pode ser um desperdício de dinheiro público, além de comprometer a qualidade dos serviços sociais no atendimento aos cidadãos brasileiros.
Para resolver os problemas de cidades, estados e países, são necessários informações em grande quantidade e com qualidade. Caso contrário, o risco é de lidarmos com as mesmas questões por anos e anos a fio, na melhor das hipóteses; ou, pior, agravarmos situações que poderiam ser facilmente resolvidas se diagnosticadas antecipadamente.
Nesse contexto, a célebre frase escrita por Lewis Carroll no clássico infantil “Alice no País das Maravilhas” pode ser ressignificada. Dados são essenciais para saber a realidade e apontar possibilidades de enfrentamento das questões coletivas. Se não soubermos onde estamos e nem para onde queremos ir, ou seja, se não tivermos qualquer informação sobre o nosso mercado de trabalho e a nossa previdência, será mesmo que qualquer caminho serve?
Notas:
[1] FÁBIO, André Cabette. O que é “pós-verdade”, a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford. Nexo Jornal. 16 nov. 2016. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O-que-%C3%A9-%E2%80%98p%C3%B3s-verdade%E2%80%99-a-palavra-do-ano-segundo-a-Universidade-de-Oxford. Acesso em 17.09.2019.
[2] DUNKER, Christian. Psicologia das Massas Digitais e Análise do Sujeito Democrático. In: Vários autores. Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. SP: Companhia das Letras, 2019.
[3] Brexit é uma abreviação para British exit, ou seja, a saída do Reino Unido da União Europeia. A decisão foi aprovada por referendo popular em junho de 2016.
[4] DYE, Thomas D. Understanding Public Policy. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall. 1984.
[5] PINHO, Angela. SALDAÑA, Paulo e GENTILE, Rogério. Gestão Bolsonaro faz corte generalizado em bolsas de pesquisa pelo país. Folha de São Paulo. 08 mai. 2019 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/05/gestao-bolsonaro-faz-corte-generalizado-em-bolsas-de-pesquisa-pelo-pais.shtml. Acesso em 23.09.2019
[6] Academia Brasileira de Ciências. Universidades públicas respondem por mais de 95% da produção científica do Brasil. 15 abr. 2019. Disponível em http://www.abc.org.br/2019/04/15/universidades-publicas-respondem-por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/#targetText=Relata%20em%20seguida%20que%2C%20%E2%80%9Cde,mais%20de%20190%20pa%C3%ADses)%E2%80%9D. Acesso em 23.09.2019
[7] GIRARDI, Giovana. Ricardo Galvão e exonerado do INPE apos criticas de Bolsonaro a dados do desmatamento. Estadão. 02 ago. 2019. Disponível em https://sustentabilidade.estadao.com.br/blogs/ambiente-se/ricardo-galvao-e-exonerado-do-inpe-apos-criticas-de-bolsonaro-a-dados-do-desmatamento/. Acesso em 23.09.2019
[8] BARBOSA, José Gerônimo e SZWAKO, José. Por que há uma grave ameaça de apagão estatístico no Brasil. Nexo Jornal. 21 abr. 2019. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2019/Por-que-há-uma-grave-ameaça-de-apagão-estatístico-no-Brasil. Acesso em 29.09.2019
[9] ROSA, Bruno. Guedes quer vender prédio do IBGE para fazer Censo e sugere simplificar pesquisa. O Globo. 22 fev. 2019. Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/guedes-quer-vender-predio-do-ibge-para-fazer-censo-sugere-simplificar-pesquisa-23473491. Acesso em 25.09.2019
[10] ASSIBGE. Em defesa do IBGE e do Censo 2020 sem cortes. 07 jun. 2019. Disponível em https://assibge.org.br/em-defesa-do-ibge-e-do-censo-2020-sem-cortes/. Acesso em 25.09.2019
[11] ROSSI, Amanda. O que revelavam sobre os brasileiros as perguntas que serão cortadas do Censo 2020 do IBGE. BBC Brasil. 04 ago. 2019. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48931662. Acesso em 25.09.2019
[12] O Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com mais de 65 anos que não possui renda suficiente para manter a si mesmo e à sua família, conforme os critérios definidos na legislação.
[13] BASTOS, Pedro Paulo Zahluth et al. A falsificação nas contas oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime Geral de Previdência Social. Disponível em http://www.eco.unicamp.br/images/destaque/A-Falsificacao-nas-Contas-Oficiais-da-Reforma-da-Previdencia-Nota-CECON8.pdf. Acesso em 25.09.2019
[14] FABRINI, Fábio e CARAM, Bernardo. Governo decreta sigilo sobre estudos que embasam reforma da Previdência. 21 abr. 2019. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/governo-decreta-sigilo-sobre-estudos-que-embasam-reforma-da-previdencia.shtml. Acesso em 25.09.2019