A quem interessa o fim da Justiça do Trabalho?

Por Isabela Pimentel de Barros e Fernanda Cabral de Almeida, mestrandas em Direito do Trabalho e Previdenciário na UERJ

Foto: Jeso Carneiro

O desenvolvimento da tecnologia da informação e a velocidade com que notícias são disseminadas fazem com que, não só a quantidade de informação circulando aumente exponencialmente, mas também com que o leitor não tenha tempo para verificar tudo o que recebe ou mesmo para se aprofundar nas questões debatidas pela sociedade.

Isso vem sendo utilizado em várias searas da vida pública nacional e exemplos não nos faltam. Assim, enquanto se desvia o foco dos eleitores com superficialidades e mentiras, como a falsa notícia de um kit gay adotado em escolas públicas, deixa-se de promover um debate sério sobre o que realmente há de errado com o ensino público brasileiro, por exemplo.

É o que temos visto nos últimos tempos com as ideias de extinção da Justiça do Trabalho.

A questão, contudo, tomou proporções maiores do que se esperava na semana passada, quando o Deputado Federal Paulo Eduardo Martins (PSC/PR) começou a se mobilizar, colhendo assinaturas, para apresentar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que ensejaria a extinção da Justiça do Trabalho, incorporando-a à Justiça Federal. A proposta ainda extinguiria o Ministério Público do Trabalho, órgão que tem como missão institucional “fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista quando houver interesse público, procurando regularizar e mediar as relações entre empregados e empregadores”.

Em que pese o Deputado tenha desistido de apresentar a PEC em questão, dada a proporção que a notícia tomou, passamos a fazer alguns esclarecimentos acerca da relevância da Justiça do Trabalho para a sociedade.

O assunto sobre a extinção desta Justiça especializada é polêmico e circundado de premissas falsas, muitas vezes procurando escamotear a verdadeira intenção daqueles que se opõem à sua existência e visam ao enfraquecimento das instâncias especializadas que atuam na tutela dos direitos dos trabalhadores.

Este texto busca esclarecer aspectos duvidáveis e contraditórios das razões que embasaram a malfadada proposta.

A proposta começa anunciando a extinção dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST), esclarecendo que as causas que se encontrem sob sua jurisdição passariam a ser apreciadas, respectivamente, pelos Tribunais Regionais Federais e pelo Superior Tribunal de Justiça, “sem prejuízo para o jurisdicionado”.

Eis aí a primeira inverdade. Sob quaisquer dos prismas que se observe a proposta, o jurisdicionado seria prejudicado.

Sob o prisma da qualidade da decisão, como se sabe, estes Tribunais não são preparados para julgarem demandas trabalhistas. O Direito do Trabalho é um ramo independente e autônomo do Direito, com princípios e lógica próprios.

Mas sob o prisma da duração razoável do processo, o jurisdicionado também seria prejudicado.

A Justiça do Trabalho é composta por 24 Tribunais Regionais do Trabalho, sendo certo que a instância superior é o TST, que tem 27 Ministros (artigo 111-A da Constituição Federal). Após o TST, as decisões podem ser submetidas ao STF.

Segundo a proposta, haveria o fim dos TRT’s e do TST e as decisões estariam submetidas aos TRF’s e ao STJ, este último composto por 33 Ministros, ao passo que os Tribunais Regionais Federais são apenas cinco em todo o país.

Não é preciso muito esforço para perceber que o tempo de tramitação dos recursos seria aumentado consideravelmente, sem contar o caos que ocorreria com a imediata remessa de todos os processos que se encontrassem nos Tribunais Regionais e no Tribunal Superior do Trabalho, em caso de sua extinção, para os cinco Tribunais Regionais Federais e para o STJ.

Para se ter uma ideia, o tempo de tramitação de um processo na Justiça do Trabalho, em 2019, na primeira Instância, foi de 253 dias. Para um processo ser finalizado, o tempo médio foi de 5 anos e 11 meses.

Já na Justiça Federal, o prazo médio, além da fase de conhecimento, é de 8 anos.

Outro fundamento da PEC seria a “necessidade de renovar as instituições judiciárias, superando uma herança que remonta ao trabalhismo do Estado Novo”.

A justificativa se apoia no fato de ter a Justiça do Trabalho seus primórdios na Era Vargas e, nesse sentido, a instituição, nos dias de hoje, aplicaria uma “ideologia trabalhista” ultrapassada que teria sido suplantada pela Reforma Trabalhista de 2017 e pelo que chamou de “realidade do século XXI”.

Nada melhor do que um órgão especializado em razão da matéria para perceber as mudanças no mundo do trabalho e aplicar as regras vigentes às relações. A CLT, desde sua promulgação em 1943, sofreu centenas de mudanças, o que não impediu o Judiciário Trabalhista de se atualizar e aplicar todas elas em suas decisões.

Reformas trabalhistas continuam na agenda do dia, mesmo depois da ampla alteração de mais de 200 dispositivos perpetrada pela Lei n. 13.467/2017. Tais fatos confirmam que as alterações estão sendo feitas constantemente pelo Legislador, com a consequente adaptação do Judiciário Trabalhista às novas leis.

E por falar em “realidade do século XXI”, dados do CNJ apontam que a Justiça do Trabalho se destaca dentre as demais, por ser o segmento do Judiciário “com maior índice de virtualização dos processos, com 100% dos casos novos eletrônicos no TST e 97,7% nos Tribunais Regionais do Trabalho, sendo 93,6% no 2º grau e 99,9% no 1º grau e com índices muito semelhantes em todos os Tribunais Regionais do Trabalho, mostrando a existência de um trabalho coordenado e uniforme neste segmento”[1].

O autor da proposta chama a atenção para a questão orçamentária e financeira, afirmando que “a despesa total da Justiça do Trabalho atinge R$ 18.283.148.816”, bem como que, do total, 94% são gastos com recursos humanos. Os dados são do CNJ.

O que não explica, entretanto, é como esses gastos seriam amenizados em patamar suficiente para justificar todos os prejuízos que seriam causados ao jurisdicionados, como já deixamos claro aqui. Ademais, a PEC mantinha a remuneração integral de todos os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho e do TST, que seriam aposentados com proventos integrais, e o aproveitamento dos Juízes e Servidores da Justiça do Trabalho na estrutura da Justiça Federal.

E mais. O argumento de que a Justiça do Trabalho é cara aos cofres públicos não se sustenta, primeiro porque se trata de uma análise relativa e subjetiva. Se considerarmos o retorno para a sociedade que a Justiça do Trabalho traz, não apenas em condenações, mas também e recolhimentos de custas, taxas, emolumentos, contribuições previdenciárias e imposto de renda[2], veremos que sua atuação é importante e necessária.

Em termos de valores recebidos pelos trabalhadores, os dados apontam que no ano de 2018, os Reclamantes receberam mais de 29 bilhões, o que, ademais de representar o recebimento dos direitos desses trabalhadores, representa também dinheiro sendo injetado na economia e aquecendo o mercado consumidor.

Outra razão é que nem tudo deve ser medido em dinheiro. A Justiça do Trabalho tem um importante papel no julgamento de causas, em boa parte ações coletivas, que visam ao cumprimento de normas de saúde e segurança do trabalho.

Ainda, a Justiça do Trabalho, assim como qualquer outro ramo do Judiciário, não foi feita para dar lucro. Não se trata de atuação do Estado-empresário, mas sim do Estado-juiz, que deve atuar na promoção da paz social em seus mais diversos níveis.

Mas ainda que admitíssemos como relevante a questão orçamentária, a Justiça do Trabalho seria extinta, mas os processos não, de modo que recursos humanos e físicos continuariam sendo necessários para lidar com todas as demandas trabalhistas, sem contar eventuais adaptações de ordem prática que acabariam inflando a estrutura da Justiça Federal. O próprio Deputado admitia, na justificativa da PEC, que sua concretização levaria a uma expansão da estrutura de segundo grau da Justiça Federal em todo o país.

O Deputado, ainda, afirmou que a Justiça do Trabalho, “com sua lógica de interferência nas relações laborais e econômicas, encoraja a judicialização e a extrema litigiosidade”. Além de não apresentar qualquer dado ou pesquisa empírica que confirme sua hipótese de que é a própria Justiça que estimula a litigiosidade, sua afirmação não se sustenta. Dados do TRT da 4ª Região demonstram que, em 58% das ações ajuizadas, pedem-se verbas rescisórias. Trata-se do empregado que foi despedido sem nada receber, fato que não tem qualquer ingerência do Poder Judiciário.

Segundo dados do TST, os assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho em 2018 foram a cobrança do pagamento do aviso prévio e da multa de 40% sobre o FGTS[3]

No mais, o discurso da litigância abusiva, que sempre é levantado como argumento à diminuição do acesso à justiça dos empregados e, agora, até mesmo para a extinção do próprio ramo do Judiciário, dificilmente leva em conta aqueles empregadores que são réus contumazes.

Registra-se que as empresas mais acionadas no TST em 2018 foram a Petrobrás, Banco do Brasil, União Federal, Caixa Econômica Federal, Correios, Banco Bradesco, Banco Santander e Banco Itaú.

Nesse sentido, destaca-se que as oito empresas mais acionadas no TST pertencem à administração pública e ao sistema financeiro.

Portanto, o discurso de extinção da Justiça do Trabalho não passa de uma tentativa de desviar o foco dos verdadeiros problemas que atingem parte dos empregados, pessoas que, em última análise, só podem contar com o Judiciário para receber o que lhes é devido.

Seguindo na análise da justificativa, o Deputado fala que a Justiça do Trabalho é “morosa”, o que procura fundamentar em dados do CNJ de 2017. Contudo, os dados trazidos pelo autor da proposta só contemplam a Justiça do Trabalho e, portanto, não fazem comparação com outros órgãos do Judiciário.

Como já mencionado acima, a Justiça do Trabalho é a mais célere de todo o Judiciário, conforme dados do CNJ[4].

Ainda, a Justiça que mais faz conciliação é a Trabalhista, que solucionou 24% de seus casos por meio de acordo – valor que aumenta para 39% quando apenas a fase de conhecimento de primeiro grau é considerada[5].

Outra justificativa para o fim da Justiça do Trabalho seria a redução do número de ações desde a Reforma Trabalhista de 2017, o que, segundo o Deputado, torna “inevitável a necessidade de repensar a existência de uma justiça especializada para julgar ações trabalhistas”. Os dados apresentados na justificativa da PEC indicam uma queda de 200 mil processos por mês para 140 mil processos.

Ora, a redução do número de ações deveria levar a uma adequação do tamanho da Justiça do Trabalho, o que, entretanto, não foi objeto de proposta pelo Deputado. Simplesmente extinguir esta ramo do Judiciário remetendo as ações para a Justiça Federal não resolveria o problema, pois, conforme o próprio Parlamentar admite, esta última não tem capacidade para receber todos estes feitos.

Recordamos que o preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho, que obriga a todos os Estados Membros, dispõe “(…) que existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações (…)” e

“(…) que é urgente melhorar essas condições no que se refere, por exemplo, à regulamentação das horas de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, ao recrutamento da mão-de-obra, à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que assegure condições de existência convenientes, à proteção dos trabalhadores contra as moléstias graves ou profissionais e os acidentes do trabalho (…)”.

Nos dizeres de Valdete Souto Severo e Fábio Petrucci, “O Direito do Trabalho é revolucionário e conservador ao mesmo tempo. Rompe com a lógica individualista mas só faz sentido na sociedade de capital, e nesse aspecto estabelece a exploração aceitável”. (SEVERO, PETRUCCI, 2016).

Nesse sentido, a Justiça do Trabalho se apresenta como  um instrumento indispensável para o equilíbrio entre capital e trabalho e à manutenção da paz social e, diante dos dados apresentados, cabe-nos indagar: a quem realmente interessa o fim da Justiça do Trabalho?

REFERÊNCIAS:

SEVERO, Valdete Souto; PETRUCCI, Fabio. O papel do Direito do Trabalho na Proteção aos Trabalhadores em Tempos de Crise. In RAMOS, Gustavo Teixeira; MELO FILHO, Hugo Cavalcanti; LOGUERCIO, José Eymard; RAMOS FILHO, Wilson (orgs.) Classe Trabalhadora e a Resistência ao Golpe de 2016. Bauru, SP, 2016, pp. 436-444.


[1] Justiça em Números 2019/Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2019.

[2] Em 2018, a Justiça do Trabalho arrecadou pouco mais de R$ 433 milhões em custas e emolumentos, R$ 2,7 bilhões de reais para a Previdência Social e quase R$ 419 milhões a título de Imposto de Renda. Dados do TST disponíveis em http://www.tst.jus.br/web/estatistica/jt/arrecadacao.

[3] http://www.tst.jus.br/web/estatistica/jt/assuntos-mais-recorrentes

[4] Justiça em Números 2019/Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2019.

[5] Justiça em Números 2019/Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2019.

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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