Califórnia AB-5: Uber, Lyft e Doordash contra-atacam

*por João Renda Leal Fernandes, Mestre em Direito pela UERJ, Visiting Researcher na Harvard Law School (2019-2020)

Imagem: Wikimedia Commons

A verdadeira novela em que se transformou o enquadramento jurídico de trabalhadores que prestam serviços através de plataformas digitais ganhou, nos últimos dias, um novo capítulo na Califórnia. Para entendê-lo, contudo, é necessário relembrar alguns acontecimentos.

Ao julgar uma ação coletiva em abril de 2018, a Suprema Corte da Califórnia interpretou o direito estadual de modo a estender a condição de “empregados” a motoristas que prestavam serviços por intermédio de um aplicativo de entrega de encomendas (caso Dynamex). A decisão unânime foi redigida pela juíza presidente do tribunal Tani Cantil-Sakauye, indicada à corte em 2010 pelo então governador Arnold Schwarzenegger (Partido Republicano).

O acórdão estabeleceu um teste de três fatores (“ABC Test”) cuja aplicação é capaz de definir se determinado trabalhador pode ser enquadrado como autônomo (independent contractor) ou se deve necessariamente ser enquadrado como empregado (employee) para os fins de aplicação do direito estadual. Nesse teste, resumidamente, o trabalhador somente pode ser considerado um independent contractor se cumulativamente (A) estiver livre do controle e direção do tomador de serviços; (B) prestar serviços que estejam fora do escopo usual dos negócios do tomador; e (C) possuir um negócio independente nesse setor em que os serviços são prestados (isto é, se for, de fato, um microempreendedor).

O Poder Legislativo da Califórnia decidiu ir além e acaba de positivar o ABC test através de um ato normativo escrito, recentemente sancionado pelo Governador do estado. Apesar dos milhões de dólares gastos com lobby, plataformas de transporte (como Uber e Lyft) e de entrega de refeições (como Doordash) não conseguiram evitar que a Câmara e o Senado estaduais aprovassem essa lei, que ficou conhecida como Assembly Bill Nº 5 (“AB-5”).

Ao longo do conturbado processo legislativo, essas empresas chegaram a prometer a concessão de alguns direitos, na tentativa de evitar que a lei fosse aprovada. Nesse sentido, ofereceram garantir aos motoristas e entregadores o pagamento de remuneração pelo menos 20% superior ao salário-mínimo estadual (fixado por hora de trabalho), reembolso de despesas relativas à manutenção e abastecimento dos automóveis, seguro contra acidentes e algumas possibilidades de negociação coletiva. Mas nada disso se revelou suficiente: a AB-5 foi sancionada e passará a produzir efeitos a partir do próximo mês de janeiro.

Conforme já escrevemos anteriormente, essa lei tem o potencial de estender aos motoristas inúmeros direitos trabalhistas previstos na legislação estadual, tais como limitação da jornada de trabalho, adicional de horas extras, salário-mínimo-hora, intervalos intrajornada, afastamento remunerado por motivo de doença, aviso-prévio de 60 dias (em caso de dispensa de 50 ou mais empregados dentro do período de um mês) e seguro-desemprego previsto nas leis da Califórnia.

Embora o lobby junto ao Parlamento estadual não tenha surtido resultado, Uber, Lyft e DoorDash anunciaram agora uma nova cartada: a coleta de assinaturas na tentativa de viabilizar um referendo (com voto direto) para aprovação de um projeto de lei (Protect App-Based Drivers and Services Act) que os isenta dos efeitos da AB-5, num processo legislativo popular expressamente autorizado pelas leis da Califórnia. Para tanto, lançaram uma campanha, com a qual estão investindo cerca de 90 milhões de dólares (quase 400 milhões de reais). Segundo o Wall Street Journal, as empresas necessitam reunir pelo menos 623.212 assinaturas de eleitores registrados (o equivalente a 5% dos votos válidos nas últimas eleições para governador), a fim de que a iniciativa possa ser admitida para votação popular em 2020.*

A proposta enquadra os motoristas como independent contractors, com a promessa de concessão de um pacote de direitos: remuneração 20% superior ao salário-mínimo-hora estadual, reembolso de 30 centavos de dólar por milha percorrida, concessão de auxílio para custeio de planos de assistência à saúde (em valores proporcionais à média de horas trabalhada por cada motorista), entre outros.

Um estudo de dois professores da Universidade da Califórnia – Berkeley demonstra, contudo, que o pacote de benefícios proposto não se revela tão generoso quanto pode parecer, especialmente porque muitas das vantagens se estenderiam apenas aos períodos em que os motoristas se encontram em viagem com passageiros ou no trajeto para buscá-los. Ao permanecerem enquadrados como independent contractors, os motoristas também seguiriam obrigados a arcar com encargos tributários mais elevados incidentes sobre a respectiva remuneração. Além disso, não teriam acesso a determinados direitos trabalhistas assegurados aos empregados pelas leis da Califórnia, como pausas para descanso, licença-médica remunerada e seguro-desemprego estadual.

Vale lembrar que a cidade de Nova Iorque já possui, desde o ano passado, lei que fixa patamares mínimos de remuneração aos motoristas que prestam esse tipo de serviço através de plataformas de transporte.

Recentemente, as autoridades de Genebra (na Suíça) chegaram a determinar a suspensão das atividades do Uber na região, em virtude do alegado descumprimento de leis trabalhistas.

No Japão, a legislação segue proibindo transporte remunerado de passageiros por motoristas não profissionais, o que restringe a atuação do Uber basicamente aos serviços de entrega de refeições (Uber Eats).

As próximas cenas da novela em que se transformou o caso da Califórnia prometem fortes emoções, especialmente diante da produção multimilionária proporcionada por Uber, Lyft e Doordash, dispostos investir o que for necessário por um final que lhes seja feliz ou menos prejudicial.

Muito mais do que a situação particular dos motoristas na Califórnia, a preocupação das empresas relaciona-se aos possíveis remakes, reproduções e à grande repercussão que o desfecho da novela poderá vir a ter mundialmente, numa espécie de efeito dominó.

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

* Sobre o tema, confira-se o seguinte vídeo publicado pelo Wall Street Journal (com a possibilidade de inclusão de legendas diretamente no Youtube):

Autor: João Renda Leal Fernandes

Mestre e Doutorando em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário no PPGD UERJ, Visiting Researcher na Harvard Law School (2019-2020), ex-bolsista da Japan Student Services Organization na Tokyo University of Foreign Studies, Juiz do Trabalho no TRT/RJ.

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