
* por Fernanda Cabral de Almeida, mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário pela UERJ
Acabamos de passar por uma Reforma da Previdência que, com o objetivo inicial de economizar 1 trilhão de reais, reduziu direitos e prestações de milhões de futuros beneficiários.
A motivação desta Reforma não foi diferente das demais – o “rombo da Previdência” e a necessidade de equilibrar as contas públicas.
Alguns dos fatores que contribuem para o desequilíbrio financeiro do sistema previdenciário são bastante divulgados pela mídia e pelo Governo, dentre os quais são exemplos o envelhecimento da população, a baixa taxa de natalidade, o desemprego estrutural e alguns privilégios ainda existentes nos regimes próprio e dos militares.
Contudo, pouco se fala sobre a contribuição da própria União neste estado de coisas em que nos encontramos. Sem esgotar o tema, observa-se que a União, que deveria contribuir com o custeio e prestar contas disso[1], solapou parte dos recursos da seguridade social desde meados da década de 1990[2], além de instituir algumas políticas de desoneração da folha de pagamentos que se revelaram verdadeiras renúncias fiscais[3].
O que causa estranheza é que, mesmo diante desse histórico de contribuição com o desequilíbrio financeiro do sistema e depois de ter imposto à população uma Reforma rigorosa, o Governo atual lança uma modalidade de contrato de trabalho (Contrato Verde e Amarelo), por intermédio da Medida Provisória n. 905, de 11/11/2019, em que, simplesmente, exonera o empregador da contribuição patronal para esta modalidade contratual.
Além da contribuição patronal de 20% sobre a folha de pagamentos, prevista no inciso I do artigo 22 da Lei n. 8.212/91, a MP ainda exonera estes empregadores do pagamento do salário-educação (2,5% sobre a folha de salários, conforme inciso I do artigo 3º do Decreto n. 87.043/82) e das contribuições sociais destinadas ao Sistema “S”.
Não é necessário dizer que, sob a ótica do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, esta medida não se justifica, especialmente porque não indica qualquer contrapartida.
Contudo, um olhar mais detido demonstrará que ela ainda não se adequa ao princípio da equidade na forma de participação do custeio, que rege o sistema de seguridade social nacional e está estampado no inciso V do parágrafo único do artigo 194 da nossa Constituição.
O conceito de equidade, que está ligado às ideias de retidão e de justiça, visa corrigir desequilíbrios que normalmente exsurgem de normas amplas e gerais, de modo a encontrar a solução mais adequada em razão das circunstâncias concretas. Assim é que o legislador, por exemplo, fixa alíquotas diferenciadas para empresas que operam com riscos de acidentes leve, médio ou grave[4]. Ao agir dessa forma, o legislador, além de estimular as empresas a investirem em segurança para os empregados, ainda faz com que contribuam de forma proporcional à sua participação no risco de acidentes. Outro exemplo é a contribuição em faixas diferenciadas de alíquotas, que aumentam conforme é maior a capacidade contributiva do segurado[5].
Ora, a desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamentos beneficiará apenas os médio e grandes empresários, portanto, justamente aqueles com maior poder contributivo, já que os micro e pequenos empregadores, via de regra, recolhem cota única pelo Simples Nacional [6], não realizando esta contribuição de forma isolada.
Em 2018, as micro e pequenas empresas respondiam por 52% dos postos de trabalho no país. Na tão aguardada retomada do emprego, as micro e pequenas empresas também protagonizaram o cenário, responsáveis por 82% dos empregos criados nos primeiros meses de 2018.
Estas empresas, contudo, não se beneficiarão da desoneração da folha de pagamentos, o que deixa clara a afronta à equidade no custeio.
A ordem social tem como objetivos o bem-estar e a justiça sociais. Tais desideratos serão conquistados, entre outras formas, pela via da seguridade social, que está baseada na solidariedade, entre pessoas e entre gerações[7].
A solidariedade, por sua vez, implica a cooperação entre os diversos atores sociais, de modo que cada um deve contribuir na medida de suas possibilidades, dividindo-se o risco social.
A medida de desoneração instituída pela MP 905/2019, portanto, também fere a solidariedade do sistema, já que, sem qualquer contrapartida, simplesmente desonera o setor mais abastado da sociedade (os médio e grandes empregadores) da contribuição para a Previdência Social.
A injustiça salta aos olhos quando nos deparamos com outra iniciativa do Governo, na mesma Medida Provisória, de descontar a contribuição previdenciária sobre as parcelas do seguro-desemprego[8].
Fica evidente, assim, que ambas as medidas – desoneração da contribuição patronal e instituição de contribuição sobre o seguro-desemprego – afrontam o princípio da equidade na forma de participação no custeio e a própria solidariedade que deve reger o sistema.
Não se nega que existem problemas sérios em nosso país a serem combatidos, especialmente no que diz respeito ao emprego e à seguridade social.
No entanto, na semana em que tivemos a divulgação do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), que confirma que 1/3 da renda do país encontra-se nas mãos de 1% da população, o que equivale à segunda maior concentração de renda do mundo[9], o discurso da falta de recursos deve ser visto com desconfiança.
De nada adianta reduzir direitos, com a finalidade de economizar nos gastos com a Previdência Social e, quase que ao mesmo tempo, criar políticas de desoneração, que diminuem o recolhimento, sobretudo quando tais políticas sequer obedecem aos princípios e objetivos basilares do nosso regime de seguridade social.
Como afirmou Wagner Balera, “cria-se, assim, um verdadeiro círculo vicioso pelo qual de nada adiante reduzir despesa, porque, ao mesmo tempo, estão reduzindo (…) receitas”[10]. A frase é de 2010, mas é perfeitamente aplicável ao contexto atual, o que demonstra que pouco avançamos neste debate.
REFERÊNCIAS:
[1] A Constituição de 1934 já previa que a União deveria custear 1/3 do sistema previdenciário (artigo 121, §1º, “h”). Na atual Constituição Federal/1988, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem custear a seguridade social, juntamente com os trabalhadores e os empregadores (artigo 195 da CF/88). Já a prestação de contas está prevista no artigo 90 da Lei n. 8.212/91, segundo o qual “o Conselho Nacional da Seguridade Social, dentro de 180 (cento e oitenta) dias da sua instalação, adotará as providências necessárias ao levantamento das dívidas da União para com a Seguridade Social”.
[2] A Emenda Constitucional de Revisão n. 01/1994 instituiu o Fundo Social de Emergência, cuja receita adviria de 20% das contribuições sociais e que durou até 2000, quando, por meio da Emenda Constitucional n. 27, foi instituída a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que só foi extinta com a Reforma da Previdência deste ano de 2019 (Emenda Constitucional n. 103/2019).
[3] O Plano Brasil Maior, instituído pela então Presidente Dilma Rousseff em 2011, através da Medida Provisória n. 540, posteriormente convertida em lei, desonerava a contribuição sobre a folha de pagamento de alguns setores, substituindo-a pela Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta. O Plano, que começou desonerando apenas alguns ramos de atividade, já em 2014 foi estendido para 273 setores, dentre os 670 registrados no CNAE. Para maiores informações sobre o assunto, consultar a Dissertação de Mestrado de Erick Baumgartner, intitulada “A desoneração da folha salarial e seu efeito sobre o mercado de trabalho no Brasil”. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12138/tde-28092017-104436/publico/OriginalErick.pdf. Acesso em: 11 dez. 2019.
[4]Nos termos do artigo 22, II, da Lei n. 8.212/91, a contribuição a cargo da empresa, para o financiamento do Seguro Acidente de Trabalho será de 1%, 2% ou de 3% sobre o total das remunerações pagas ou creditadas aos segurados empregados e trabalhadores avulsos, conforme a atividade preponderante apresente risco de acidentes do trabalho leve, médio ou grave, respectivamente.
[5] IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 24. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2019. P. 70.
[6]Nos termos da Lei Complementar n. 123/2006, microempresa é aquela que tem o faturamento anual de até R$ 360 mil, ao passo que a pequena empresa fatura, anualmente, acima de R$ 360 mil e abaixo de R$ 4,8 milhões (artigo 3º). Nos termos do artigo 13, o Simples Nacional implica o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições: (i) Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ; (ii) Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI; (iii) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL; (iv) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS; (v) Contribuição para o PIS/Pasep; (vi) Contribuição Patronal Previdenciária – CPP para a Seguridade Social, a cargo da pessoa jurídica, de que trata o art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, exceto no caso da microempresa e da empresa de pequeno porte que se dedique às atividades de prestação de serviços referidas no § 5º-C do art. 18 desta Lei Complementar; (vii) Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS; e (viii) Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS.
[7] BALERA, Wagner. Noções Preliminares de Direito Previdenciário. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 27
[8] Artigo 43 da MP n. 905/2019, que insere o artigo 4º-B na Lei n. 7.998/90.
[9] O Brasil fica atrás, apenas, do Catar.
[10] BALERA, Wagner. Noções Preliminares de Direito Previdenciário. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 267
[11] BAUMGARTNER, Erik. A desoneração da folha salarial e seu efeito sobre o mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2017.