* por Ricardo Visser, pesquisador pós doutoral na faculdade de direito da Universidade do estado do Rio de Janeiro*.

A ideia deste curto texto é apontar para algumas encruzilhadas sobre o panorama do trabalho no Brasil. Para um diagnóstico preciso do que se sucede, é preciso romper com a ideia ingênua de que encontraremos uma causa explicativa única para a problemática. Assim, o correto é procurar correlacionar fatores de maior ou menor grau de influência no cenário. Neste particular, não cremos que a abismal desigualdade brasileira realmente se alivie a partir do paradigma da redistribuição compensatória, sem reconstruí-la como um componente de um espectro mais profundo e gradual do desenvolvimento produtivo e social. Também não se avança sem procurar aprofundar os impasses e opções institucionais daí advindos.
Apesar de o projeto neoliberal ser hegemônico e configurar as diretrizes dominantes da economia política atual, ele não é o único fator que explica as modificações do enquadramento laboral que vêm se sucedendo nos últimos 30-40 anos. Mundialmente, a ascensão industrial da China, Coréia do Sul e de outros tigres asiáticos enfatizam a consolidação de um novo paradigma produtivo o qual cria cadeias complexas de serviços e produção de alta densidade intelectual.
Em tais economias, assim como nas complexas em geral, há consideráveis setores da divisão do trabalho que não operam seguindo os moldes tradicionais do fordismo, uma vez que o método e o conteúdo da atividade laboral se flexibilizam com relação à rigidez da divisão de tarefas entre concepção, aplicação e execução, assim como trazem à tona um nova categoria de especialização, que busca muito mais uma combinação mais ou menos coerente de diferentes domínios do conhecimento do que a limitação a uma atividade determinada na linha de montagem. Igualmente, as relações de trabalho se modificam, posto que além do modelo fabril, baseado no tempo de trabalho, surge o trabalho por projetos, além da crescente diferenciação entre carreira e posto ocupacional.
Assim, o fenômeno da precarização, da ascensão do subemprego, do agudo aumento da informalidade e das atuais taxas de desemprego é, em parte, tributário do conflito entre capital e trabalho. No entanto, noutro flanco, o problema se origina na transformação do cenário internacional em relação à posição brasileira, e no profundo primitivismo econômico refletido na estrutura ocupacional e produtiva brasileira. Um indício que aponta nessa direção é a constância dos números sobre desindustrialização desde a restituição da democracia brasileira. De igual monta, um raio-x de nossa estrutura de empregos demonstra que o Brasil é basicamente uma economia de serviços de baixa densidade intelectual [1], condenando o país à fragmentação das cadeias produtivas, à posição de economia não complexa e às cadeias produtivas que pouco empregam ou empregam mal. Pode-se ainda encaixar a predominância da força de trabalho no Brasil entre os níveis I e II dos agrupamentos ocupacionais da classificação ISCO-08 [2].
Com isso, a prensa da precariedade laboral não se deixa totalmente entrever exclusivamente pela dominação do capital financeiro sobre o trabalho. Ainda que indubitavelmente operante e, cada vez mais hegemônica, há mais uma dimensão extra, a qual se presta à verificação nas opções de ideários em economia política e direito do trabalho, feitas tanto por governos à esquerda e quanto à direita. Nesse sentido, existe uma irredutibilidade da questão nacional enquanto projeto de construção do Estado e deste como portador de ideários e enquadramentos institucionais a respeito da economia política e do direito (mais especificamente direito do trabalho).
Assim sendo, precarização e flexibilização, entendida como um novo regime jurídico e produtivo sobre o trabalho humano (sobretudo, no setor de serviços), não são fenômenos totalmente idênticos. Um confirma mais virulentamente no outro quanto menos reconhecimento pré-jurídico uma atividade laboral goza. Isto envolve tanto seu valor econômico quanto cultural/simbólico (status) na divisão do trabalho.
Decerto, a recente reforma trabalhista e, seus pacotes subsequentes, têm como foco a desregulamentação precarizante do trabalho, ao pretender dissimular a patente assimetria entre patrão e empregado. O que temos que imaginar é que as estratégias de flexibilização e desregulamentação impactam muito mais intensamente uma estrutura ocupacional pouco complexa como a nossa. O exemplo mais explícito desse processo é a possibilidade de negociação direta, contrariando a tradição trabalhista celebrada na CLT. Contudo, o fenômeno, resultando na precarização, só pode ser totalmente entendido em sua inteireza se aliarmos o fator acima descrito ao fato de que a maioria destas ocupações no setor de serviços básicos são inflacionadas, munindo as empresas do controle de um exército de reserva. Isso sem falar na informalidade, que agora ganha novos contornos com a ascensão dos aplicativos.
Se a legislação trabalhista, consagrada na era Vargas, visava à garantia de direitos aos trabalhadores industriais a partir do regime autoritário do Estado Novo, duas características históricas da Justiça do trabalho e da CLT chamam atenção: a) desde sua manjedoura, a CLT jamais foi capaz de regular a maior parte das relações de emprego no Brasil. Seu regime jurídico jamais encontrou aderência mais forte na estrutura ocupacional brasileira. Em 1940, em torno de 8% da população se via empregada na indústria de transformação [3]; b) o nascimento da Justiça do Trabalho e do corporativismo sindicalista coexistiu com o esforço de criminalização e burocratização (criação de empecilhos para uma greve ser declarada legal) do direito de greve no Brasil, assim como amplamente documentado pelo historiador do direito Gustavo Siqueira [4]. É claro que a repressão a tal direito foi incapaz de suprimir por completo as greves e debates a respeito do direito de greve na doutrina nacional.
O problema que se esboça é: de um lado o ataque aos direitos sociais e trabalhistas pelo projeto neoliberal, de outro, uma legislação que não se generalizou e, que, na verdade, se tornou um sistema de privilégios, já que direitos que não são para todos, não são direitos; são privilégios. Além disso, tal sistema de privilégios encontra cada vez menos materialidade jurídica, dada a ascensão de um novo regime laboral.
Em 2004, uma das únicas iniciativas verificadas pelas forças progressistas foi a Emenda Constitucional n°45, que laconicamente expandia a competência da Justiça do Trabalho, não mais entendida como relações de emprego, isto é, capital/trabalho, mas estendida para as relações de trabalho (em geral). Da parte dos progressistas, pouco ou nada se ouviu sobre uma nova legislação que pudesse fazer frente à devassa neoliberal. Pois é: ceifaram mata virgem.
Uma resposta ao projeto neoliberal de legislação trabalhista já passou da hora de ser concebido. Contudo, a proposta deve ser livre de dogmatismos. A direção do debate deve colocar alguns itens em pauta, de modo a conformarem um elenco de diretrizes:
I) Reconfigurar a representação sindical, estendê-la e fortalecê-la em trabalhos formais, mas precários. Quando houver a divisão entre temporários e permanentes, o sindicato dos permanentes deve poder representar os temporários [5];
II) Incrementar dispositivos legais que protejam trabalhadores, mesmo sem representação coletiva, além de reverter a escamoteação da responsabilização solidária no trabalho terceirizado. Deve fortalecer o aparato estatal para fiscalização do trabalho (Ceia, 2015);
III) Acertar a dimensão regressiva do emprego, como a desoneração da folha, com a intenção de diminuição da informalidade, tendo como contrapartida a criação de um marco legal e de filiação empresarial (bolsas de estudo para os de melhor desempenho, visando ascensão dentro da hierarquia empresarial e qualificação) dos setores formais de alta rotatividade;
Essas são apenas algumas diretrizes, mas que devem ser debatidas o quanto antes.
Referências:
[1] Estrutura de empregos no Brasil. Disponível em: https://www.paulogala.com.br/estrutura-de-empregos-no-brasil-porque-somos-subdesenvolvidos/. Acessado em: 05/02/2020
[2] ISCO-08: Disponível em: https://www.ilo.org/public/english/bureau/stat/isco/. Acessado em : 05/02/2020.
[3] CEIA, M. E., 2015. 320 f. A CLT 70 anos depois: o direito do trabalho entre dois espíritos do capitalismo. Dissteração (Mestrado em Ciência Política) – Departamento de Ciência Política, Niterói.
[4] SIQUEIRA, Gustavo. História do direito de greve no Brasil (1890-1946): criminalização, mito da outorga e movimentos sociais. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017.
[5] UNGER, Mangabeira. Reconstrução das relações entre capital e trabalho no Brasil. Brasília Junho, 2007. Disponível em: http://www.robertounger.com/pt/wp-content/uploads/2017/01/o-trabalho-e-o-capital-no-brasil.pdf Acessado em 03 Fev. 2020
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