A MULHER TRABALHADORA NO SÉCULO XXI E O CAPITALISMO BICICLETEIRO: AINDA O OCASO DA FEMINIZAÇÃO DA POBREZA

* por Carla Appollinario de Castro, graduada em Direito, mestre e doutora em Ciências Jurídicas e Sociais, professora da Faculdade de Direito e do Programa de Sociologia e Direito, ambos da Universidade Federal Fluminense.

Imagem: O Deda Questão

Acredito que todas nós realizamos um exercício de reflexão – se não diário, pelo menos, em algum momento de nossas vidas – de comparação entre as condições atuais do ser-mulher-mãe-administradora da casa-trabalhadora e as das nossas mães, tias, avós e bisavós.

É evidente que o tempo histórico nos permite perceber que existem diferenças gritantes entre cada uma dessas vivências, muitas das quais, inclusive, atribuídas aos avanços tecnológicos e/ou culturais.

Noutro dia estávamos, quatro colegas de trabalho, todas mulheres, conversando. Uma delas nos confessou que adora ouvir os sons que emanam dos eletrodomésticos funcionando em sua casa e que chega a ligar vários ao mesmo tempo só para sentir a sensação de não estar realizando aquelas atividades que outrora ficavam inexoravelmente sob a responsabilidade exclusiva da mulher nos afazeres domésticos. Em outras palavras, ela nos confidenciou o seu alívio por ser “liberada” da execução do trabalho doméstico não remunerado, isto é, de uma parcela de trabalho não pago que é socialmente atribuída à mulher. E todas nós comemoramos, é claro, essa pequena conquista da companheira, às gargalhadas porque, a propósito, nos dias sombrios que correm, sorrir é um símbolo de resistência!

Pois bem, o tempo passou… Conquistamos diversos direitos e o mercado de trabalho (ufa!). Muitas de nós fizeram cursos técnicos, graduação, especialização, mestrado, doutorado e/ou pós-doutorado. Às vezes, mais de um de cada. Rompemos as barreiras da política e da esfera pública. Estamos em todos os lugares, afinal “lugar de mulher é onde ela quiser” e é mesmo. E de tudo isso, realmente, não abriremos mão.   

Inobstante essa trajetória de conquistas tem um aspecto que permanece constante e que tem permeado todas as nossas lutas e as daquelas que nos antecederam que consiste em nossa hiperexploração como grupo social e econômico, ou seja, uma pobreza que se consolida apesar do trabalho ou dos anos de estudo e que tem um nome e um rosto feminino, que não pode ser negligenciada pela teoria social ou pela teoria jurídica.

***

O que há em comum entre nós, mulheres do século XXI e as nossas antecessoras é que a pobreza assume uma faceta que nos permite afirmar que ela é propositalmente feminizada como forma de potencializar a valorização do capital que se transforma constantemente em mais valor. Isso independentemente das sucessivas crises econômicas do capitalismo e, de forma ainda mais acentuada, nas próprias crises.

Esse processo corresponde à feminização da pobreza, isto é:

(…) uma idéia que remonta à década de 1970. Foi popularizada no início da década de 1990, e não menos no domínio da pesquisa por agências das Nações Unidas. O conceito tem vários significados, alguns dos quais não são totalmente consistentes com a sua implícita noção de mudança. Nós propomos uma definição que está em consonância com muitos estudos recentes no campo: a feminização da pobreza é uma mudança nos níveis de pobreza partindo de um viés desfavorável às mulheres ou aos domicílios chefiados por mulheres[i].

É possível identificar essa dinâmica proposital que resulta em maior valorização do valor a partir de algumas pistas, extraídas a partir da exploração econômica das mulheres, como sugere o IPEA:

a) aumento da proporção de mulheres entre os pobres;

b) aumento da proporção de pessoas em famílias chefiadas por mulheres entre os pobres;

c) aumento absoluto na incidência ou na intensidade da pobreza entre as mulheres;

d) aumento nos diferenciais de incidência ou de intensidade da pobreza entre mulheres e homens;

e) aumento na incidência ou na intensidade da pobreza entre as pessoas de famílias chefiadas por mulheres; e

 f) aumento nos diferenciais de incidência ou de intensidade da pobreza entre as pessoas de famílias chefiadas por mulheres e de famílias chefiadas por homens[ii].

Seguindo alguns dos passos acima, tem-se que, com relação à proporção de pessoas em famílias chefiadas por mulheres entre os pobres esse número cresceu, entre 2001 e 2015, 105%, de acordo com a pesquisa intitulada ‘Mulheres Chefes de Família no Brasil: Avanços e Desafios’. Isso corresponde a um total de 28,9 milhões de famílias chefiadas por mulheres em 2015[iii]. Nos anos que se seguiram, embora os lares chefiados por mulheres ainda sejam minoria, tivemos pelo terceiro ano consecutivo, o aumento no número de mulheres que comandam suas casas. No ano de 2018, elas foram chefes em 45% dos lares contra 55% por homens, de acordo com os dados da pesquisa Pnad Contínua realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A pesquisa do IBGE revelou que, das 71 milhões de residências existentes no Brasil no ano passado, 55% era chefiada por homens e 45% por mulheres[iv].

Quanto ao aumento da proporção das mulheres entre os pobres e à intensidade da pobreza entre as mulheres, esta pode ser compreendida por meio de alguns fatores todos relacionados à inserção da mulher no mercado de trabalho e, por isso, dele decorrente, tais como o desemprego (taxa de ocupação e taxa de desocupação), a média salarial, o nível de desigualdade (perdas salariais, concentração de renda e má distribuição dos salários).

O desemprego (aferido pela taxa de desemprego e pela de desocupação) é um dos principais indicadores sociais, especialmente, nos países que atrelaram a cidadania à inserção do indivíduo no mercado formal de trabalho, como é o nosso caso.

No terceiro trimestre de 2019, o desemprego alcançou índice recorde no período recente e a média nacional foi de 11,8%. Entre as mulheres, o percentual foi de 13,9% enquanto o dos homens foi de 10%. Para os pardos, esse índice foi de 13,6% e para os negros o total bateu no teto de 14,9%, de acordo com a PNAD. De acordo com o IBGE, pretos e pardos, juntos, totalizam dois terços dos desempregados e as mulheres foram mais da metade (53,3%)[v].

A desigualdade salarial entre homens e mulheres no país diminuiu bem discretamente no ano retrasado, mas ainda continua em um nível alto, segundo estudo realizado pelo IBGE[vi]. Em 2018, as mulheres ganhavam, em média, 20,5% menos que os homens, ao passo que, em 2017, essa disparidade era de 21,7%. Ou seja, houve uma redução de 1,2 ponto percentual. Desde 2012, quando começou a série histórica do IBGE, a desigualdade salarial teve redução de 2,9 pontos percentuais, pois as mulheres receberam, em média, 23,4% menos que os homens naquele ano. Entretanto, quando comparada essa realidade à de 2016, a desigualdade aumentou 1,3 ponto, pois o salário médio das mulheres era 19,2% inferior ao dos homens. A média salarial, em valores, revela que o salário médio das mulheres foi de R$2.050,00 em 2018. Isso representa R$ 529,00 (20,5%) a menos que a média de rendimento dos homens (R$2.579,00) no mesmo período.

Na tabela abaixo, é possível perceber melhor o quanto as mulheres receberam a menos que os homens, em média, em cada ano. Nela, o maior percentual revela quanto mais desiguais foram os rendimentos:

TABELA 1

Diferença de rendimentos mulheres x homens

(quanto as mulheres receberam a menos que os homens)

201223,4%
201324,4%
2014Não divulgado
201523,2%
201619,2%
201721,7%
201820,5%
2019Não divulgado
FONTE: Elaboração própria, a partir de AGÊNCIA IBGE[vii].

                   

Como vimos, houve discreta redução na média geral da diferença salarial entre homens e mulheres. Entretanto, quando os grupos de mulheres são separados por faixa etária, os dados divulgados pelo IBGE[viii] mostram que a desigualdade salarial é maior no grupo entre 40 e 49 anos. Em 2018, as mulheres nessa faixa de idade receberam, em média, 25,1% menos do que os homens do mesmo grupo. A diferença foi menor nas faixas entre 20 e 29 anos (13,1%) e 30 e 39 anos (18,4%).

O rendimento mensal das mulheres é inferior ao dos homens por inúmeros fatores, mas principalmente porque as trabalhadoras mulheres recebem menos por hora trabalhada e porque trabalham menos horas por semana. É interessante notar que esses dois fatores são reflexos diretos da dupla, tripla e às vezes quádrupla jornada feminina, ou seja, do fato delas trabalharem e também serem responsáveis pelos deveres de cuidado dos filhos, da casa e de familiares – pais, sogros, avós – (trabalho doméstico não remunerado), além do trabalho produtivo não doméstico (remunerado).

A pesquisa[ix] revela que, no ano de 2016, as mulheres dedicavam, em média, 18 horas semanais ao trabalho doméstico não remunerado (isto é, cuidados de pessoas ou com a casa). Isso corresponde a 73% a mais do que os homens (10,5 horas). Essa diferença, no Nordeste, chegou a 80% (19 contra 10,5). Essa disparidade explica, em parte, o fato de a proporção de mulheres ocupadas em trabalhos por tempo parcial (de até 30 horas semanais) ser o dobro da de homens (28,2% das mulheres ocupadas, contra 14,1% dos homens).

O mesmo estudo[x] mostra que as mulheres recebiam R$13,00 por hora trabalhada em 2018 e que esse valor é correspondente a 91,5% do recebido por homens (R$14,20). Essa disparidade foi maior em 2017, quando elas recebiam o correspondente a 88,7% do salário masculino por hora.

Além de um salário-hora menor, as mulheres trabalharam, em média, 4,8 horas a menos que os homens durante o período de uma semana nas atividades remuneradas. O homem trabalhou 42,7 horas semanais, enquanto a mulher, 37,8 horas por semanas. Em 2012, essa diferença chegou a ser de 6 horas. O fato de a diferença de horas ter diminuído, entretanto, não tem sido suficiente para alterar a desigualdade salarial, pois o salário-hora continua sendo menor[xi].

O dado mais significativo dessa pesquisa consiste na identificação de que a disparidade existe apesar de as mulheres terem maior nível de instrução. Em 2018, 22,8% das mulheres trabalhadoras tinham ensino superior enquanto que o mesmo índice, entre os homens, era de 18,4%. Mulheres sem grau de instrução e fundamental incompleto apresentaram a menor renda média do levantamento, identificada em R$880,00[xii].

Diante desse cenário, o acesso à previdência também se revela prejudicado à medida que, embora não seja a única possibilidade (uma vez que a mulher pode se filiar à previdência como contribuinte facultativa), com as disparidades acima apresentadas quanto à inserção no mercado formal de trabalho (seja pela menor remuneração ou menor absorção em termos de mão de obra ocupada), a vinculação ao regime de previdência se torna, em todos os casos, mais difícil, o que também contribui para a desigualdade social. 

Considerando a combinação entre maior desocupação, maior subutilização, menor remuneração, maior escolaridade e menor proteção da previdência social, entre as mulheres, conforme demonstrado acima, é possível concluir que a precarização das condições e relações de trabalho atinge em maior grau as mulheres. Mesmo as que têm sua força de trabalho utilizada pelos empregos formais são bastante atingidas, pois as diversas modalidades de flexibilização da proteção social, apresentadas no primeiro tópico, atualmente estão inseridas na legislação trabalhista. Desse modo, os contratos carregam, em sua essência, a redução do custo do trabalho que, para o trabalhador, significa, na realidade, maior precarização e pauperização.

Os dados totais de 2019 ainda não foram disponibilizados e, por esse motivo, deixaram de ser abordados na presente discussão, mas a foto apresentada acima foi veiculada no ano passado. Acredito que ela materializa o profundo desafio de enfrentarmos a desigualdade social histórica brasileira desde os grupos mais atingidos pela hiperexploração pelo trabalho, sendo o feminino o mais sensível uma vez que ainda não fomos totalmente liberadas do trabalho reprodutivo e do doméstico não remunerado, a despeito dos profundos avanços tecnológicos. Não estou me referindo à ausência de trabalho porque ele está mais vivo do que nunca, mas a uma forma muito específica de trabalho contemporâneo em que a precariedade dos vínculos, a intensificação do seu ritmo e a precarização das suas condições e relações chegaram até mesmo ao centro da sociedade salarial que é a forma emprego regular, pago e com registro do contrato e dos direitos na Carteira de Trabalho. Essa é a nova face do capitalismo bicicleteiro que dilui todos os sólidos para nos lembrar que os direitos alcançados no liberalismo só foram inquestionáveis enquanto não se constituíam como um obstáculo à acumulação capitalista.

Para nós mulheres, especialmente, que saímos ainda mais pauperizadas e socialmente excluídas do processo de implantação de duas sucessivas contrarreformas (a trabalhista e a previdenciária) restou o desafio, já revelado por Simone de Beauvoir, de que nunca devemos nos esquecer “(…) que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”[xiii].

Mulheres trabalhadoras do mundo, uni-vos [pois nosso trabalho tem sustentado o capitalismo há tempo demais]!


[i] ONE PAGER. CENTRO INTERNACIONAL DE POBREZA. O que Entendemos por “Feminização da Pobreza”?. Outubro, 2008. Nº 58. Disponível em: https://ipcig.org/pub/port/IPCOnePager58.pdf.

[ii] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. A face feminina da pobreza: Sobrerepresentação e Feminização da pobreza no Brasil. TEXTO PARA DISCUSSÃO No 1137. Brasília, novembro de 2005. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1137.pdf.  

[iii] CAVENAGHI, Suzana. Mulheres chefes de família no Brasil : avanços e desafios / Suzana Cavenaghi; José Eustáquio Diniz Alves. — Rio de Janeiro:  ENS-CPES, 2018. Disponível em: http://www.ens.edu.br/arquivos/mulheres-chefes-de-familia-no-brasil-estudo-sobre-seguro-edicao-32_1.pdf.

[iv] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pnad Contínua. Dezembro, 2018. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e .

[v] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pnad Contínua. Novembro, 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e .

[vi] AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. “Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem”. 07/03/2019. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem.

[vii] AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. “Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem”. 07/03/2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem&gt;.

[viii] AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. “Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem”. 07/03/2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem&gt;.

[ix] AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. “Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem”. 07/03/2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem&gt;.

[x] AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. “Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem”. 07/03/2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem&gt;.

[xi] AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. “Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem”. 07/03/2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem&gt;.

[xii] AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. “Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem”. 07/03/2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem&gt;.

[xiii] BEAUVOIR, Simone. In: GUICHARD, Alexandra. Les 15 meilleures citations féministes de Simone de Beauvoir. Disponível em: <http://www.cosmopolitan.fr/,les-15-meilleures-citations-feministes-de-simone-de-beauvoir,1961708.asp&gt;.

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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