
Marina Novellino Valverde*
e Nathalia Vogas de Souza**
Em tempos de pandemia de Covid-19, estado de calamidade e quarentena, a continuidade das relações de emprego e das operações empresariais tem sido muito discutida. Em meio a esse caos, a opção que mais tem se mostrado efetiva, para atender aos dois lados, é o trabalho remoto.
Já há pesquisas que apontam que 43% das empresas brasileiras teriam adotado o trabalho remoto em resposta ao Coronavírus [1]. A tendência é mundial e já foi aderida por empresas como Apple, Google, Twitter [2] e, até mesmo, BNDES [3]. Aponta-se que, no Brasil, no ramo das empresas de tecnologia, mais de 130 empresas já teriam adotado o trabalho remoto [4].
Diante do rápido avanço do Novo Coronavírus e da repentina necessidade da quarentena, muitos empregadores adotaram o sistema de trabalho remoto às pressas, confundindo os conceitos de home Office e teletrabalho, ignorando as exigências legais normalmente aplicáveis ao segundo.
Em meio ao estado de calamidade, reconhecido por meio do Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020, no dia 22 de março de 2020, foi editada a Medida Provisória nº 927, que regulamentou uma série de medidas trabalhistas de enfrentamento da epidemia atual. A referida MP trouxe, então, em seus artigos 4º e 5º, uma regulamentação diferente para o teletrabalho implementado durante este período.
Temos, assim, atualmente, três tipos de trabalho remoto possíveis, que serão melhor explicados abaixo. São eles: (i) o teletrabalho, previsto na CLT; (ii) o home office; e (iii) o teletrabalho implementado durante o estado de calamidade atual, fundamentado na Medida Provisória nº 927/2020.
Abordar o tema do trabalho remoto parece urgente. Há muito ele é discutido, no entanto, muitas de suas questões ainda não foram pacificadas, tais como, se deve haver controle de jornada, como reduzir a confusão entre vida pessoal e profissional, quais são os limites do poder diretivo dentro do ambiente doméstico, como fica a fiscalização da saúde e segurança do trabalho, entre outros.
O problema é que a adoção desta modalidade, às pressas, evidencia justamente essas fragilidades do trabalho remoto.
Nossa intenção, com este artigo, entretanto, não é abordá-las, mas ressaltar a diferença entre os três tipos de trabalho remoto que atualmente coexistem no Brasil, pois o teletrabalho implementado em meio à crise atual não deve, nem pode, ser tido como parâmetro em tempos normais, justamente por também ter sido desenhado às pressas, sem que as fragilidades dessa modalidade tenham sido discutidas ou solucionadas. Reconhecemos, por outro lado, a vantagem em se adotar essa solução, pois ela garante, neste momento, a preservação do emprego e a manutenção da quarentena.
HOME OFFICE
Pode-se dizer que home office e teletrabalho são espécies do gênero “trabalho remoto” ou “trabalho à distância”.
Home Office nada mais é do que o trabalho em domicílio. Não há regras específicas para ele, podendo ser realizado mediante o uso de tecnologia, ou não.
Apesar de o teletrabalho apenas ter sido regulamentado, no Brasil, em 2017, com a chamada Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/17), o trabalho remoto já vinha sendo praticado há anos.
Isso explica, inclusive,o fato de a fundação da SOBRATT (Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades) ter ocorrido em 1999. [5]
Em termos de regulamentação de trabalho remoto, o que se tinha na CLT (antes da Reforma Trabalhista) era o artigo 6º, modificado em 2011, pela Lei nº 12.551, que equiparou os efeitos jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios pessoais e diretos.
O TELETRABALHO NO BRASIL
As primeiras referências ao teletrabalho, no cenário internacional, são imputadas a Jack Nilles, ex-engenheiro da NASA, que em 1973 redigiu um livro chamado “The Telecommunications-Transportation Trade off”, propondo o telecommuting como uma “alternativa ao transporte”, o que significou proposta inovadora diante da crise energética do petróleo naquele contexto. O sucesso de suas ideias fez com que, nos anos posteriores, Nilles fosse responsável por implantar em uma série de empresas americanas este sistema de trabalho remoto, cuja ideia era levar o trabalho ao trabalhador, e não o oposto. [6]
O teletrabalho surge com a introdução das tecnologias no processo produtivo e ganha força a partir do momento em que boa parte da prestação de serviços passa a ser feita exclusivamente mediante ferramentas tecnológicas.
Somente com a chamada Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), quando foram alterados cerca de 100 dispositivos na Consolidação das Leis do Trabalho introduziu-se, nesta lei,a regulamentação do teletrabalho, nos artigos 75-A a 75-E.
Ressalta-se que até 2017 não era tão comum o uso da expressão “teletrabalho”. Falava-se mais em “home office”, como sinônimo de trabalho remoto. Inclusive, na jurisprudência dos tribunais trabalhistas, se procurarmos a palavra “teletrabalho”, limitando o período de busca dos acórdãos a 2017 (ou seja, antes da Reforma Trabalhista), encontraremos pouquíssimos julgados, mas se substituirmos por “home office” o número de resultados se multiplica.
As diferenças essenciais do home office para o teletrabalho, conceitualmente, seriam: (i) a obrigatoriedade do uso de tecnologias de comunicação e informação para a execução do segundo, enquanto, no primeiro, isso seria dispensável; e (ii) o fato de o home office ser o trabalho em domicílio, enquanto o teletrabalho pode ser realizado em outros locais (como, por exemplo, telecentros).
Com a regulamentação do teletrabalho, pela Reforma Trabalhista, a distinção fica ainda mais clara, pois o teletrabalho passa a ter requisitos próprios, como, por exemplo, a prestação de serviços preponderantemente fora do estabelecimento do empregador, a necessidade de anuência do empregado para adoção desta modalidade (e a possibilidade de ser revertida unilateralmente pelo empregador), a necessidade de se fazer constar a sua implementação em termo aditivo ao contrato de trabalho, entre outros.
Denota-se, portanto, que, hoje, teletrabalho é a modalidade regulamentada na CLT e o home office é o trabalho remoto realizado eventualmente em casa, sem necessidade de utilização de tecnologias da informação e comunicação.
O TELETRABALHO E O COVID-19
E essa terceira figura que veio com a Medida Provisória nº 927/2020?Ao abordá-la, temos que ter um pouco de cautela.
A MP seguiu a tendência mundial de privilegiar o trabalho remoto no momento de calamidade vivido por conta do Novo Coronavírus.
Antes mesmo de sua edição, o Ministério Público do Trabalho já havia emitido a Nota Técnica nº 06/2020, na qual, dentre outros aspectos, recomendava a priorização de meios alternativos prévios, entre os quais, a adoção de trabalho remoto (teletrabalho/home office), antes de qualquer plano de demissão voluntária ou dispensa de trabalhadores.
A primeira ressalva a se fazer sobre a MP é que o teletrabalho por ela regulamentado não veio integrar o nosso sistema de normas trabalhistas permanentemente. Trata-se, em verdade, de uma modalidade temporária.
A Medida Provisória estabelece que, durante o atual estado de calamidade pública, o empregador poderá, por ato unilateral, alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância, bem como determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, sendo dispensado o registro prévio da alteração no contrato de trabalho, desde que a alteração seja comunicada ao empregado dentro do prazo mínimo de 48 horas.
Também permitiu expressamente a adoção do regime de teletrabalho, trabalho remoto ou a distância, para estagiários e aprendizes.
Conceituou ainda que, para fins do disposto na Medida, se considera teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho à distância a prestação de serviços preponderante ou totalmente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias da informação e comunicação que, por sua natureza, não configurem trabalho externo, sendo aplicável o art. 62, III,CLT.
O que se vê é que a MP não apenas flexibilizou os requisitos para a adoção do teletrabalho – tais como, a necessidade de mútuo acordo entre as partes e de registro em aditivo contratual –, como também tratou de maneira igual todas as hipóteses de trabalho remoto.
Criou-se uma figura híbrida provisória, que desconsidera as diferenciações entre os diversos tipos de trabalho remoto, possivelmente a fim de evitar controvérsias interpretativas e garantir a regulamentação de todos os casos de trabalho realizado em domicílio ao longo da quarentena.
Contudo, ao fazer menção ao artigo 62, III da CLT, a MP atraiu a todos esses casos de trabalho remoto o regramento do teletrabalho no que concerne à inaplicabilidade do Capítulo da “Duração do Trabalho” da CLT a estes empregados.
Com isso, acaba-se atraindo também a discussão acerca do pagamento de eventuais horas extraordinárias a esses empregados.
Isso porque, há quem entenda que ao excluir os teletrabalhadores das disposições do Capítulo “Da Duração do Trabalho” da CLT, esses trabalhadores, ainda que controlados por seus empregadores, não fariam jus a percepção de horas extras, intervalo intrajornada e interjornada, hora noturna e adicional noturno.
No entanto, outra corrente entende que a interpretação constitucional do art. 62, III, CLT seria no sentido de que estão excluídos da proteção quanto à jornada apenas aqueles teletrabalhadores que realmente tenham ampla liberdade e flexibilidade em sua jornada de trabalho, sem qualquer tipo de controle de horários por parte do empregador. Tal entendimento teria respaldo no próprio art. 7º da Constituição Federal e, ainda, no art. 6º da CLT.
Mas na prática haverá de fato diferenças entre os diversos tipos de trabalho remoto em tempos de quarentena? É certo que algumas atividades terão que ser realizadas em horário comercial, muitas vezes envolvendo ligações, videoconferências ou troca de mensagens em tempo real, enquanto outros empregados terão maior flexibilidade, assemelhando-se mais aos teletrabalhadores clássicos. Assim, evidentemente, uma parcela de trabalhadores terá sua jornada em maior medida controlada por seus empregadores, ainda que por meios não convencionais.
Além de toda essa discussão, outro ponto relevante tratado pela MP nº 927/2020 no que diz respeito ao trabalho remoto foi a previsão acerca da responsabilidade pela aquisição, manutenção e fornecimento dos equipamentos para trabalho.
A MP estipulou que deverá ser firmado contrato tratando do tema, no prazo de 30 dias, e que, na hipótese de o empregado não possuir os equipamentos necessários e adequados à prestação do teletrabalho, dois serão os cenários possíveis: poderá o empregador fornecer os equipamentos em regime de comodato e pagar pelos serviços de infraestrutura, sem que isso caracterize verba de natureza salarial, ou, não o fazendo, o empregado, impossibilitado de trabalhar, terá sua jornada computada como tempo à disposição do empregador.
Além disso, ficou definido que o tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo.
Este último tópico remete à Súmula 428 do TST, que já havia pacificado que o uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso. Além disso, certamente o uso de aplicativos ou programas de comunicação para fins pessoais também não poderia configurar tempo à disposição do empregador.
A discussão surge, contudo, nos casos em que se evidenciar comprovada exigência de uso de tais aplicativos e programas fora do horário normal de trabalho do empregado.
Assim, já há quem defenda a inconstitucionalidade da MP, sob o fundamento de que a mesma teria dado tratamento desigual aos teletrabalhadores [7]. Isso porque, enquanto possibilita a exclusão da percepção de horas extras (ao fazer remissão ao art. 62, III da CLT) e da caracterização dos regimes de prontidão, sobreaviso e tempo à disposição a uns, a outros – os que não possuam os equipamentos necessários ao trabalho, nem tenham os mesmos disponibilizados pelo empregador – estabelece expressamente que sua jornada será considerada como tempo à disposição.
Entendemos que a MP não seguiu a melhor técnica, sendo forçoso admitir que há equívocos conceituais, em especial em suas premissas. Contudo, não concordamos com a análise de inconstitucionalidade neste momento, notadamente por se tratar de uma conjuntura de calamidade, em que se faz necessário priorizar as intenções do legislador frente às imperfeições técnicas da MP.
Ressalte-se que, caso o empregado que esteja atuando em regime de trabalho remoto seja contaminado com o Coronavírus, caberá à empresa deixar de exigir o trabalho pelo empregado durante seu período de recuperação/quarentena, considerando esse período como falta justificada, nos termos do art. 3º da Lei 13.979/2020.
Por fim, a MP ainda legalizou tudo que foi feito nos últimos 30 dias, ou seja, quem adotou medidas no sentido de colocar seus trabalhadores em regime de home office ou teletrabalho, ainda que confundindo os institutos, no período compreendido entre 21 de fevereiro e 22 de março de 2020, não terá, a priori, problemas trabalhistas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O nosso objetivo, com este breve artigo, foi ressaltar a importância do trabalho remoto em tempos de pandemia do Novo Coronavírus, para a continuidade das operações empresariais e dos vínculos de emprego. Para isso, entendemos importante diferenciar o teletrabalho, previsto na Medida Provisória nº 927/2020, do teletrabalho regulamentado pela CLT e, ainda, do home office. A necessária distinção tem fundamento no fato de a referida MP ter trazido previsão de uma figura híbrida, com menos formalidades, compatível com o contexto em que nos inserimos.
Alertamos, todavia, ser imperiosa a sua transitoriedade. Há, pois, muito o que se discutir acerca do teletrabalho.
Nesse momento, parece mais importante focarmos em explorar essa solução ratificada pela MP, com a consciência de que: os empregados, colocados em teletrabalho às pressas, não foram preparados ou treinados para performar nessa modalidade, que eles estão inseridos em contexto que causa medo e ansiedade, que muitos poderão ser acometidos pelo Coronavírus ou tenham que cuidar de parentes acometidos…Não é tempo para cobrança ostensiva de metas.
Parece mais compatível com o teletrabalho e com o momento atual, passar tarefas factíveis ao longo do dia, orientando, dando suporte e confiando na autogestão do tempo pelo próprio empregado. Como bem observa Domenico de Masi, o teletrabalho:
“é um trabalho que se realiza com procedimentos bem codificados, no que diz respeito ao seu início e fim: a ordem é do tipo “até depois de amanhã, na hora tal devo ter feito isso”. Porém, apresenta procedimentos bastante decodificados no que diz respeito ao processo: o trabalhador pode cumprir a sua tarefa de manhã ou de noite, na cozinha, no terraço, tanto faz, pois isso não interessa à empresa” [8]
Esperamos, que ao final dessa crise, evidenciada a importância do teletrabalho, as discussões acerca do trabalho remoto sejam aprofundadas, para que as suas muitas questões possam, aos poucos, serem mitigadas.
REFERÊNCIAS
* Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogada.
**Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogada.
[5] http://www.sobratt.org.br/
[6] Para saber mais sobre Jack Nilles e sua atual empresa, Jala, que promove pesquisas sobre teletrabalho, acessar: https://www.jala.com/history.php
[7] O entendimento em questão é compartilhado, por exemplo, pela Dra. Vólia Bomfim Cassar. Confira-se: http://genjuridico.com.br/2020/03/25/mp-927-impactos-do-covid-19/
[8] DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Rio de Janeiro, Sextante: 2000. p. 221.