A (in)aplicabilidade da teoria do Fato do Príncipe às rescisões trabalhistas em decorrência da Covid-19.

Por Isaac Marsico do Couto Bemerguy, monitor no Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito e Processo do Trabalho (IDD/PUC-Rio) e advogado e Renata Ferreira Spíndola de Miranda, mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ) e advogada.

Fonte: https://www.pexels.com/pt-br/foto/construcao-predio-edificio-arquitetura-3534746/

Em um ambiente de incertezas de ordem prática e técnica, como o presentemente instaurado na seara do Direito do Trabalho, recai sobre os Operadores do Direito a tentativa de garantir a todos os interessados um caminho pelo qual se guiar. É neste sentido que, dadas as atuais condições sob as quais se insere o complexo normativo trabalhista nacional, torna-se imprescindível analisarmos a (im)possibilidade de imputarmos a Teoria do Factum Principis às rescisões contratuais operadas durante a Pandemia Covid-19.

Inicialmente, cabe destacar que, no Direito Administrativo, o Fato do Príncipe é definido como um fato praticado pela Administração Pública, genérico e extracontratual, que acarreta o aumento de custos do Contrato Administrativo ajustado [1]. Igualmente, Hely Lopes Meirelles define o Factum Principis como toda determinação estatal, positiva ou negativa, geral, imprevista e imprevisível que onere substancialmente a execução daquilo que foi pactuado no Contrato Administrativo [2]. A principal consequência da aplicação do instituto é a proteção aos particulares contra danos ou prejuízos causados pelo Poder Público. Em tais casos, a Administração estaria obrigada a compensação integral das despesas suportados pela outra parte.

Em termos de Direito Obreiro, a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 486, adapta o Teorema à realidade trabalhista. Estipula que nos casos de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de Autoridade Municipal, Estadual ou Federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do Governo responsável.

Outrora, a doutrina se desafiava a trazer exemplos práticos da aplicação do instituto na seara laboral. Mauricio Godinho Delgado, por exemplo, não compreendia, como hipóteses que configurariam o Factum Principis, o fechamento do estabelecimento por ato da autoridade administrativa sanitária, no exercício de sua atribuição fiscalizadora ou o fechamento por decisão judicial [3].

No momento, o debate volta aos holofotes, após a fala do Presidente da República, em rede nacional, sobre a possibilidade de responsabilização dos Entes Federados pelas dispensas ocasionadas pela quarentena autorizada pela Lei 13.979/20.

Na semana da elaboração deste artigo, especificamente, foi noticiada pela imprensa a rescisão dos contratos de trabalho de 690 funcionários de uma renomada churrascaria no Rio de Janeiro, com fundamento no art. 486 da CLT. O comunicado aos funcionários trazia ainda que o pagamento das verbas rescisórias estaria a cargo do Governo do Estado do Rio de Janeiro [4]. Entretanto, na seara laboral, não há unanimidade quanto à responsabilização da Administração Pública pelos encargos trabalhistas na hipótese de paralisação (temporária ou definitiva) das atividades, em virtude de ato do Poder Público, diante da situação de pandemia.

Isso porque, nas lições tradicionais da Doutrina, o ato estatal deveria decorrer da escolha discricionária do Administrador, após análise do juízo de conveniência e oportunidade, o qual acarretaria a inviabilidade jurídica e econômica da atividade empresarial.

A justificativa para responsabilização da Administração Pública pela extinção anômala do contrato de trabalho reside na distribuição dos ônus das escolhas administrativas pela sociedade em geral que as financia por meio da arrecadação de tributos. Essa é uma forma de resguardar a atividade econômica prestada por um particular dos efeitos dos atos praticados discricionariamente pelos gestores públicos.

São raros os casos que a jurisprudência pátria acolhe a extinção dos contratos por Fato do Príncipe [5], posto que as modificações e medidas legais e administrativas do Estado, ainda que possam afetar a empresa, mesmo gravemente, são usualmente consideradas como parte inerente do risco empresarial, como bem pontua Maurício Godinho Delgado.

No entanto, o que vemos, na realidade, é uma situação distinta da hipótese de um ato pontual da administração que force o encerramento de alguma atividade econômica e com isso acarrete na dificuldade de empregadores cumprirem com os pagamentos de direito a seus empregados. As medidas de restrição adotadas pelos Entes Públicos são motivadas pela nova doença que assola o mundo e não pelo mero interesse da Administração Pública, conforme debatido pelo Min. Alexandre Agra Belmonte no seminário online promovido pela TV ConJur.

Vivemos uma situação excepcional, na qual é mandatório que a Administração Pública atue conforme as diretrizes da OMS e das autoridades sanitárias e médicas brasileiras e internacionais, uma vez que se busca preservar a saúde, segurança e vida da população – que são, também, valores constitucionalmente protegidos em nossa Carta Magna de 1988 – diante da insuficiência do sistema de saúde nacional.

A atual conjuntura é tão anômala que o Decreto Legislativo de 06/2020 reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública, com a duração de seus efeitos até 31/12/20, e, junto com a Lei nº 13.979/20, foi autorizada a adoção de medidas pelos Estados, Municípios e o Distrito Federal para restringir o convívio social, os serviços públicos e as atividades empresariais não essenciais. Dentre as medidas autorizadas está o fechamento provisório de estabelecimentos comerciais, se necessário, como forma de se evitar a possível contaminação ou a propagação da doença (Art. 2º da Lei nº 13. 979/20).

As medidas restritivas adotadas no país estão em sintonia às adotadas pelos demais países que estão no combate à propagação do vírus, o que afasta a discricionariedade do ato estatal e, por conseguinte, torna inaplicável o Teorema do Fato do Príncipe às relações trabalhistas.

Voltando ao caso acima exposto, deparamo-nos com a segunda celeuma sobre o tema: as parcelas que deveriam ser suportadas pela Administração Pública, uma vez que o comando previsto no art. 486 da CLT dispõe apenas sobre a previsão da “indenização”, não fazendo referência a quais verbas rescisórias seriam devidas.

A doutrina, valendo-se das técnicas de hermenêutica, propõe as seguintes teses: i) a autoridade competente é responsável pelo pagamento de todas as parcelas decorrentes da cessação do contrato de trabalho, ii) o pagamento seria limitado à multa fundiária de 40% do FGTS (Lei 8.036/1990, art. 18, § 1º), para os contratos sem determinação de prazo, ou a fixada no art. 479 da CLT, para os contratos por prazo determinado; e iii) o pagamento seria limitado à metade da indenização devida por tempo de serviço por contrato indeterminado ou por contrato determinado, correspondente à 20% sobre o FGTS, com fundamento no art. 18, § 2º, Lei nº 8.036/90.

Quanto à minoração da multa do FGTS, cabe elucidar que a doutrina administrativista realiza uma separação didática entre Fato do Príncipe e a Força Maior. De igual forma, a doutrina trabalhista e a CLT naturalmente dividem o término do Contrato de Trabalho entre: Cessação por Fato do Príncipe (art. 486) e Cessação por Força Maior (arts. 501 usque 504).

Entretanto, caso venha a ser configurado o Factum Principis pela atuação da Administração Pública, não deve tal instituto ser interpretado de forma isolada, com vistas somente ao art. 486 da CLT. Deve, também, ser interpretado de forma conjugada com os arts. 501 e, especialmente, 502, II, da CLT, o qual determina a diminuição, pela metade, da indenização a qual faz jus o empregado. Em consequência, e como defende Vólia Bomfim Cassar, o Fato do Príncipe deve ser compreendido legalmente e academicamente como espécie do gênero Força Maior[6].

Desse modo, no tocante ao FGTS, e em conformidade com a redação celetista e posicionamento doutrinário, há necessidade de serem adimplidas apenas as verbas indenizatórias. Estas, clarifique-se, limitam-se tão somente a “multa” do FGTS dividida pela metade, no importe de 20% – em que pese não haver afastamento do tradicional princípio de proteção ao trabalhador hipossuficiente. As demais verbas trabalhistas não são, outrossim, de competência da Administração Pública.

Por fim, a terceira controvérsia sobre a temática corresponde a justiça competente para processar e julgar a demanda. Entendemos que, na eventual hipótese de configuração do Fato do Príncipe, ela deverá ser determinada pela Justiça do Trabalho, sendo esta a responsável pelas ações oriundas das relações de trabalho, incluindo os entes da Administração Pública Direta, por força do art. 114, I da CRFB/88 e da EC 45/04.

Refuta-se, ainda, qualquer aplicação unilateral da rescisão por Fato do Príncipe pelo empregador nas atuais circunstâncias econômico-trabalhistas, pois qualifica-se, de forma oblíqua, em última instância, como comportamento ilegal, por desrespeitar o princípio da proteção e o art. 2º, caput da CLT. Repassa os riscos da atividade de empresa para os empregados, os deixando em situação de extrema vulnerabilidade, considerando, neste período de quarentena, as dificuldades no acesso aos benefícios sociais e na busca por um novo emprego. Desse modo, a eventual rescisão do contrato de trabalho por fato do príncipe, deve ser determinada previamente pela Justiça do Trabalho, para que sejam assegurados os direitos sociais do trabalhador e a segurança jurídica.

Considerações Finais

Iniciamos o mês de maio com o montante de 240 mil demissões em virtude da crise do novo coronavírus, segundo a contabilização do DIEESE com base nas demissões noticiadas pela grande imprensa[7]. Este dado, para além da mais refinada Teoria Jurídica, demonstra uma realidade Econômica nacional que necessita de novos caminhos para sua reconstrução.

Cremos, entretanto, que nenhum dos caminhos para a recuperação do país, neste tocante, passa por transferir a responsabilidade trabalhista da desgastada situação econômica, fruto da pandemia Covid-19, à Administração Pública, sob pena de onerar ainda mais as contas públicas que são financiadas por toda a população. Em verdade, vivemos uma situação onde os Entes Políticos, em consonância com as melhores práticas internacionais, têm lutado diuturnamente pela concretização dos Direitos Fundamentais do povo brasileiro, conforme insculpidos na Carta Política de 1988.

Clarifique-se, portanto, que defendemos a hipótese de ausência de Responsabilidade Trabalhista dos Municípios, Estados, Distrito Federal e União pelas verbas deduzidas do art. 486 da CLT. Não constitui, em nossa visão, critério científico válido para enquadrar em Factum Principis a atuação dos Entes Políticos em sua ação na defesa dos brasileiros e contra a expansão da pandemia.

A tentativa de interpretar de forma isolacionista o art. 486 da CLT – com fins de enxergar o Factum Principis na corrente atuação estatal – busca afastar a aplicação da Teoria do Risco do Empreendimento, consagrada no art. 2º da CLT, a qual atribuiu ao Empregador os riscos da atividade de empresa.

Isto posto, em conclusão derradeira, nos parece que a saída para o desequilíbrio econômico provocado pela crise do novo coronavírus não está em repassar indistintamente os riscos da atividade empresarial à coletividade. Caberá à Justiça do Trabalho a análise concreta da questão, em última instância, para se evitar, assim, eventual abuso de direito.

Referências

[1] OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. Rio de Janeiro: Método, 2019. p. 530-531.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 270.

[3] Delgado, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed.São Paulo: LTr, 2019. p. 1357.

[4] Em nota oficial, referida empresa informou que seriam pagas as indenizações referentes às férias e 13º salário e que mantinha a expectativa na recontratação gradual dos funcionários, à medida que os restaurantes reabrissem.

[5] Recentemente o Juízo da 6ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro (TRT-1) declarou extinta sem resolução de mérito, a Ação Civil Pública nº 100267-12.2020.5.01.0006 que exigia o bloqueio de R$ 500 bilhões da União para combater prejuízos causados pelo novo coronavírus.

[6] CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho: de acordo com a Reforma Trabalhista: Lei 13.467/2017. 14. ed. Rio de Janeiro: Grupo Gen, 2017. p. 994-995. [7] DIEESE. 1º de Maio: Dia do Trabalhador em cenário ainda mais difícil com Covid-19. Boletim Especial nº 02, de 30 de abril de 2020

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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