Por Ana Beatriz Bueno de Jesus. Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ; bolsista CAPES) e Giulia Valente de Lacerda Cunha. Graduada em Direito pela UFRJ. Integrantes do Grupo de Pesquisa “Trabalho no Século XXI” (UFRJ)

As tecnologias que foram implementadas na segunda metade do século XXI, marcadas pelo avanço da internet e dos smartphones, possibilitaram a emergência de um novo tipo de prestação de serviços, através de plataformas digitais, tendo como seu primeiro marco o aplicativo “uber”. As novas tecnologias da informação e da comunicação colocaram o homem em um mundo virtual onde não há dia, nem noite, nem distância. [1]
É o período histórico marcado pela “uberização” do Direito do Trabalho, definido por Eduardo Adamovich como a “tentativa de abolição do trabalho subordinado em certos setores, dentro da irrealizável pretensão a um mundo que todos ou quase todos seriam empreendedores” [2]. Na “uberização” se procura afastar a ideia de relação de emprego, argumentando-se, por exemplo, que o trabalhador pode escolher seu horário de trabalho e utilizar seus próprios instrumentos de labor.
Nessa toada, com o avanço das formas de trabalho desse século, tomamos ciência do chamado “trabalho 4.0”, cuja nomenclatura já nos traz um apelo futurista. Trata-se da indústria digital, que propicia a inserção do trabalho em plataformas e a economia colaborativa. A intenção dessa forma de trabalho é proporcionar um ambiente mais flexível e interconectado. O trabalho 4.0 se revela como um sucessor dos anteriores, quais sejam: o trabalho 1.0, que surgiu no século XIX junto à revolução industrial, o trabalho 2.0, no século XX, surgindo com o Estado Social e a produção em massa e, após, o trabalho 3.0, a partir da década de 70 do último século, inserindo a informática no trabalho [3].
Nesse contexto de “uberização” e “trabalho 4.0”, surge uma nova roupagem econômica, a “gig economy” ou economia sob demanda, em uma livre tradução. A gig economy pode ser entendida como uma expressão do fenômeno da uberização. Nela, não há vínculo empregatício e pagamento de salário por parte do empregador. Através dessa perspectiva, os trabalhadores são autônomos e assumem os riscos e custos decorrentes do emprego, pois as empresas, nesse caso, são colocadas como um meio de intermediação entre o trabalhador e o cliente usuário [4].
Percebe-se um novo modelo de serviços, chamado “crowdwork”, que se refere a atividades que envolvem a realização de tarefas, através de plataformas online, que colocam em contato diversas organizações e indivíduos com outras organizações e indivíduos por meio da internet, permitindo a aproximação entre consumidores e trabalhadores de todo o mundo [5]. Assim, conta com três diferentes elementos: aqueles que solicitam os serviços, os que prestam os serviços e as plataformas virtuais que intermediam a oferta e a demanda [6].
Tendo como base esse contexto hodierno, o presente artigo se baseia em decisões recentes do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, onde se discute a existência do vínculo de emprego entre um entregador da plataforma Rappi e a referida plataforma. Para a presente pesquisa, observamos quatro decisões publicadas no ano de 2020.
O aplicativo “Rappi”, como é definido pela própria plataforma, proporciona a “entrega de qualquer coisa”, tendo surgido com a ideia de ser um aplicativo de delivery. Dessa forma, a ideia inicial seria de um crowdwork específico, especializado em entregas. No entanto, é possível solicitar diferentes serviços pelo referido aplicativo, como massagem, manicure, faxina, entre outros, sendo genérico (engloba diversas atividades). Essa pesquisa foca no serviço de entrega realizado por motofretistas nessa plataforma, com ênfase no debate da configuração do vínculo de emprego.
É válido ressaltar os elementos caracterizadores da relação de emprego, quais sejam: trabalho não eventual (habitual), prestado “intuitu personae” (pessoalidade) por pessoa física, em situação de subordinação, com onerosidade. É valido lembrar que tais elementos não são apenas matéria de direito e sim de fato, pois circundam o mundo prático do trabalho, conforme o princípio da primazia da realidade sobre a forma (artigo 9, da CLT) [7]. Ao conhecer esses elementos, podemos compreender, com maior clareza, as decisões proferidas pelo TRT-2 a respeito da configuração do vínculo de emprego entre os entregadores e a plataforma Rappi.
Dessa maneira, a fim de tornar mais didática a exposição, elaboramos a tabela (tabela 1) a seguir, com base na jurisprudência do TRT-2:

Dessa forma, é perceptível que não há uma unanimidade dentro do próprio tribunal a respeito da relação empregatícia entre o entregador e a plataforma Rappi. O principal argumento utilizado para a não configuração do vínculo de emprego é a “liberdade” do entregador para prestar os serviços, podendo escolher sua jornada e trabalhar para quantas plataformas desejar, o que afastaria a subordinação e a aplicação do artigo 3º, da CLT.
No entanto, como bem preceituado por Han, o neoliberalismo utiliza um “poder inteligente” que passa essa liberdade, fazendo com que as pessoas se submetam à dominação “por si mesmas” [8]. É o que se nota, por exemplo, quando esses entregadores precisam trabalhar cerca de 12 horas por dia para atingir uma meta mensal de subsistência, como colocado no acórdão do processo nº 1000955-39.2019.5.02.0043 ou se veem frente à necessidade de estar em um determinado nível de classificação dentro da plataforma, para terem maiores benefícios, conforme o acórdão do processo nº 1000963-33.2019.5.02.0005. É através desse “sistema de controle inteligente que se concilia os algoritmos com a gestão humana, culminando com uma forma de subordinação peculiar” [9] (a subordinação realizada por algoritmos).
Já o principal argumento a favor do vínculo de emprego se pauta, sobretudo, no controle realizado pela plataforma Rappi, tendo em vista, principalmente, as sanções impostas aos trabalhadores, em caso de descumprimento de normas internas, a continuidade do serviço e a jornada de trabalho excessiva.
É importante destacar que a tentativa recorrente das plataformas digitais de entrega de classificar esses trabalhadores como autônomos, deixa-os sem qualquer direito trabalhista, gerando uma gama de trabalhadores precarizados, que ficam à mercê da “própria sorte”. Tal autonomia pode ser combatida, dentre outras alegações, pelo argumento da “subordinação algorítmica”, que pode ser entendida como a prática de monitorar o trabalhador por meio da plataforma, o que caracteriza uma forma de controle, configurando a subordinação [10].
A ausência de direitos corrobora para desproteção do trabalhador, o que tende a se agravar na atual situação de pandemia, em decorrência da contaminação pela doença Covid-19.
Considerações Finais
O presente artigo buscou analisar o serviço de delivery oferecido pela plataforma digital Rappi, observando a caracterização do vínculo de emprego a partir de decisões do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo).
Inicialmente, foi trazida a noção de uberização do Direito do Trabalho, onde é afastada a ideia da relação de emprego, o que acaba se tornando um impulso para que todos se tornem “empreendedores” em um futuro próximo. Nesse raciocínio, coube explicitar do que trata o atual modo de trabalho, denominado como trabalho 4.0, os conceitos de “gig economy” e “crowdwork”, respectivas formas de economia e serviço atreladas a esse contexto.
A partir dessas conceituações, foram analisadas quatro decisões do TRT-2 (conforme tabela), nas quais foi possível observar que não há um entendimento unânime acerca da caracterização do vínculo empregatício, havendo divergência de compreensão dentro do próprio tribunal.
Referências Bibliográficas
[1] SUPIOT, Alain. Homo Juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
[2] ADAMOVICH, Eduardo Henrique Raymundo Von. Estudos sobre a Reforma do Direito e do Processo do Trabalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 17.
[3] MOREIRA, Teresa Coelho. Algumas questões sobre o trabalho 4.0. Revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 9, n. 86, p. 152-167, mar. 2020. Disponível em <https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/170751>. Acesso em 28 mai. 2020.
[4] FILGUEIRAS, Vitor Araújo; PEDREIRA, Sara Costa. Trabalho Descartável: as mudanças nas formas de contratação introdução pelas reformas trabalhistas no mundo. Cadernos do CEAS: Revista crítica de humanidades, [S.l.], n. 248, p. 578-607, dez. 2019. Disponível em <https://periodicos.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/588/473>. Acesso em: 28 mai. 2020.
[5] KALIL, Renan Bernardi. Direito do Trabalho e Economia de Compartilhamento: primeiras considerações. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes et all (coord.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 147-154.
[6] SIGNES, Adrián Todolí. O Mercado de Trabalho no Século XXI: on-demandeconomy, crowdsourcing e outras formas de descentralização produtiva que atomizam o mercado de trabalho. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes et all (coord.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 28-43.
[7] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16ª edição rev. e ampl. São Paulo, LTr,2017, p. 314.
[8] HAN, Byung-Chull. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
[9] REIS, Daniela Muradas; CORASSA, Eugênio Delmaestro. Aplicativos de Transporte e Plataforma de Controle: o mito da tecnologia disruptiva do emprego e a subordinação por algoritmos. In: LEME, Ana Carolina Reis Paes et all (coord.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017, p. 157-165, p. 162
[10] CANNAS, Fábio. Uberização do trabalho: A ilusão de não se subordinar. Anais do Seminário Internacional em Direitos Humanos e Sociedade, v. 2, 2020.
.
Excelente artigo, matéria muito atual, surfou na crista da onda!
CurtirCurtir