* Por Ana Beatriz Bueno de Jesus. Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ; bolsista CAPES). Integrante do grupo de pesquisa “Trabalho no Século XXI” (UFRJ). Renata Ferreira Spíndola de Miranda. Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ). Advogada e Wagner Ribeiro D’Assumpção. Mestrando em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ). Professor e Advogado.

O documentário “O Dilema das Redes” – dirigido por Jeff Orlowski, disponível na Netflix – traz o depoimento de executivos e especialistas que ajudaram a construir as principais plataformas digitais utilizadas em todo o mundo: Google, Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e Pinterest. A ideia desse documentário, segundo o diretor, é de compreender o que essas empresas, realmente, estão fazendo [1]: o “outro lado da moeda”, citando as próprias palavras dos entrevistados. Há muito tempo o Google deixou de ser apenas uma caixa de pesquisa e o Facebook uma página para se ter informações sobre os amigos. Por detrás dessas plataformas, há equipes de renomados profissionais aliados à potentes algoritmos analisando o comportamento de cada usuário, ainda que os nossos likes, clicks e views possam parecer, para nós, tão desinteressantes para o Big Data.
É interessante ressaltar que – dentre outras produções – Jeff Orlowski possui mais dois documentários na Netflix, quais sejam: “Perseguindo o Gelo” (2012) e a sua sequência, “Em Busca dos Corais” (2017). Eles tratam, de diferentes formas, sobre a degradação do meio ambiente, tendo o primeiro sido premiado com o “Emmy de melhor documentário sobre a natureza” [2] e o segundo recebido o prêmio de “Campeão da Terra pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente por divulgar fortes mensagens sobre o meio ambiente por meio de seu trabalho” [3]. Percebe-se, desde já, que o cineasta procura lançar um olhar reflexivo e impactante sobre questões mundiais atuais, que precisam ser debatidas pela sociedade.
Sua última produção – “O Dilema das Redes” – possui o intuito de abordar temas sensíveis, desde o impacto das redes sociais na saúde física-psíquica dos usuários até os possíveis impactos às democracias, iniciando com a seguinte pergunta aos entrevistados: “Qual é o problema das redes sociais?”. Já adiantamos que a resposta não é tão simples. Diante das respostas apresentadas pelos entrevistados, o objetivo da presente resenha é a sua análise, a partir da obra “Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder” de autoria de Byung-Chul Han.
Han inicia sua obra tratando sobre a “crise da liberdade”, onde o neoliberalismo trabalha com a liberdade do indivíduo, explorando “tudo aquilo que pertence às práticas e formas de expressão da liberdade (como a emoção, o jogo e a comunicação)” [4]. Essa crise é evidenciada logo no início do documentário, onde se observa que os cidadãos americanos têm a sua liberdade de comunicação e a sua emoção exploradas, a todo momento, por essas empresas, tornando-se viciados e até depressivos, em busca de uma perfeição e aceitação social inatingíveis.
Nesse sentido, já no início do documentário, tem-se o depoimento revelador de Jonathan Haidt – psicólogo social de NYU Stern Schooh of Business – que destaca o aumento de 62% nas internações por auto-flagelo de meninas entre 15 e 19 anos e de 189% entre 10 e 14 anos, desde o ano de 2009. Em relação aos índices de suícidio, os números são ainda mais impressionantes: registra-se o aumento de 70% da taxa de suicídio de meninas entre 15 e 19 anos em comparação ao período de 2001-2010 e, no caso das pré-adolescentes (10-14 anos) o aumento foi de 151%. Para Haidt, a análise desse padrão de comportamento aponta para as redes sociais e a sua causa também estaria nelas. É com base nesse cenário, que o Han pontua que “no regime neoliberal de autoexploração, a agressão é dirigida contra nós mesmos” [5]. O sistema não transforma as pessoas em revolucionárias, mas em usuários depressivos. Na psicopolítica neoliberal, objeto de análise de Han, a técnica de dominação que estabiliza e mantém o sistema dominante se dá por meio da programação e do controle psicológicos: o poder inteligente [6].
Já se foi o tempo em que o poder era exercido exclusivamente com base na violência, como se via na obra Orwelliana de 1984, a qual dialoga perfeitamente com a duas outras obras analisadas nesse artigo. O líder na figura do Grande Irmão, por meio da Teletela, controlava, com rigidez, todas as esferas da vida da população, a qual tinha ciência e obedecia ao regime totalitário. Caso alguém buscasse ir contra qualquer determinação do Grande Irmão, a pessoa era submetida à coerção física e psíquica até que, ao final do dia, terminava por aprender a amar o Grande Irmão [7].
Hoje, o poder não se opõe à liberdade, ele sabe utilizá-la a seu favor. Han descreve que a técnica de poder neoliberal assume a forma sutil, flexível e inteligente. O poder inteligente assume a forma permissiva e põe de lado a sua negatividade, passando-se, assim, por liberdade. As pessoas sabem que estão sendo monitoradas pela Big Data e, ainda assim, voluntariamente, alimentam suas páginas das redes sociais.
Tristan Harris – ex designer ético do google, entrevistado no documentário – afirma que “quando você olha ao redor, sente que o mundo está enlouquecendo. Você precisa se perguntar: ‘isso é normal?’ Ou será que estamos todos sob algum tipo de feitiço?” Esse questionamento pode ser compreendido a partir do “poder inteligente” realizado pelo neoliberalismo [8]. Um poder que não é colocado em evidência. Quanto maior é o poder, mais silenciosamente atua. É um mecanismo tão silencioso que as pessoas não se dão conta de estarem submetidas a ele.
Para contribuir para a formação desse cenário apocalíptico, o documentário ilustra que, ainda que as pessoas tenham consciência dessa nova forma de poder e optem por parar de usar suas redes sociais, as plataformas foram planejadas para atuar junto ao nosso inconsciente, de forma que nos cause dependência.
Começamos a perceber que o nosso corpo, a nossa mente, principalmente a nossa autoestima, passam a depender da dopamina liberada pelos likes e pelas notificações de interações nas redes. De igual maneira, os aplicativos são programados para interagir conosco quando estamos há algum tempo sem usá-los, aguçando nossa curiosidade e estimulando, novamente, a nossa dependência. O documentário traz a constatação que existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de psicotrópicos e a de softwares.
Essa “tecnologia persuasiva”, que busca a dependência de seus usuários, manipula as pessoas como cobaias, de acordo com o entrevistado Sandy Parakilas – ex-gerente de operações do Facebook e ex-gerente de produto da uber. Essa técnica é tão envolvente que os próprios entrevistados, cientes de como funciona, vêem-se frente aos seus celulares, despendendo tempo nas redes sociais.
Nesse raciocínio, Tim Kendall, ex-executivo do facebook, relata que a ideia dessas empresas é manter as pessoas em frente à tela, conectadas o tempo inteiro, gerando um dispêndio de vida ilimitado. Dentro de uma suposta liberdade, as pessoas colocam na rede “todo o tipo de dados e informações pessoais, sem avaliar as consequências” [9]. Os sujeitos são os verdadeiros produtos dessas plataformas, eles que estão à venda, de acordo com Tristan Harris.
Assim, Shoshana Zuboff – professora emérita da Harvard Business School, também entrevistada – afirma que essas empresas vendem “certeza”. É preciso fazer “grandes previsões”, para conseguir ter sucesso dentro desse negócio, o que exige a necessidade de “muitos dados”. Tristan Harris coloca que esse é o, por muitos denominado, “capitalismo de vigilância”. É um mercado que, segundo Zuboff, “negocia futuros de humanos em escala”.
Essa nova forma de comércio configura um verdadeiro “pan-óptico digital”, que “oferece uma visão 360º de seus internos” [10]. Nele, “não se é torturado, se é tuitado ou postado. Não há nenhum Mistério da Verdade. A transparência e a informação substituem a verdade. O novo objetivo do poder não consiste na administração do passado, mas no controle psicopolítico do futuro” [11].
Esse é um ponto-chave do documentário, onde é revelado, justamente, o objetivo principal dessas empresas: observar, salvar e negociar dados dos seus usuários, na medida em que possuem “mais informações sobre nós do que já se imaginou na história da humanidade”, de acordo com Zuboff. É o que Han [12] chama de “totalitarismo ou fetichismo dos dados”, através do qual “tudo deve se tornar dados e informação”. De acordo com Tristan Harris, estamos vivendo “uma espécie totalmente nova de poder e de influência”.
A nova forma de controle, proporcionada pelos algoritmos, através desse poder inteligente, já pode ser verificada nas relações de trabalho. É a base, por exemplo, do trabalho realizado por intermédio das plataformas digitais – como as de entrega: ifood, rappi e uber eats, onde, sob o argumento do neoliberalismo que “torna o trabalhador o empreendedor” [13], os trabalhadores são constantemente monitorados, sofrendo advertências, devendo operar conforme as diretrizes colocadas pelas plataformas e, constantemente, precisam alcançar metas.
Além de sofrerem esse controle direto das plataformas digitais, cristalinamente visível quando a gestão da plataforma determina unilateralmente a sua manutenção ou exclusão, os trabalhadores também são submetidos a uma outra forma de controle, dessa vez, mais sútil e menos visível, que se dá pelo controle externo por meio da avaliação direta do usuário final do serviço.
Usualmente, a forma escolhida para esse controle se utiliza de técnicas da gamificação, como se vê, por exemplo, quando se avalia o serviço prestado pelo trabalhador por meio da concessão de determinado número de “estrelas”. Assim, o usuário final (muitas vezes, na figura do consumidor) acaba por assumir o controle da qualidade do serviço prestado e os trabalhadores são indiretamente pressionados a manterem uma boa pontuação (ou a alcançarem o número máximo de 5 “estrelinhas”) para permanecerem ativos em suas respectivas plataformas.
Nesse caso, o poder inteligente, exercido pela plataforma nesta relação de trabalho, se disfarça ao transferir para o usuário do serviço, na relação de consumo, o controle final da qualidade do serviço prestado.
Outra forma de controle, por meio das plataformas digitais, ocorre por meio do monitoramento da localização geográfica dos trabalhadores, no qual é possível identificar não só a produtividade, mas, praticamente, todos os passos dados pelo trabalhador. Recentemente, uma forma de “escapar” dessa supervisão excessiva encontrada pelos entregadores foi desligar o GPS do celular ao irem participar dos movimentos grevistas, para evitar que sejam bloqueados pela plataforma [14].
Percebe-se que o controle exacerbado, realizado através de dados, próprio das novas técnicas de poder do neoliberalismo, é capaz de subjugar os trabalhadores, proporcionando um medo constante, que pode gerar uma exaustão física e/ou mental.
Por fim, o último ponto destacado pelo documentário é o das fake news, que se espalham rapidamente e de forma muito mais rápida que notícias verídicas. As redes sociais revelam ser um meio eficaz de manipulação pública. Conforme Renée Diresta – gerente de pesquisa do Observatório de Internet de Standford, também entrevistada – “as plataformas tornaram possível espalhar narrativas manipuladoras com uma facilidade fenomenal e sem muito dinheiro”, o que gera, consequentemente, uma alienação social que cresce de forma exponencial. A inteligência se torna limitada, não significando mais que há possibilidade de escolha, na medida em que “está presa a um entre determinado pelo sistema” [15].
Além da possibilidade de manipulação pública, as fakes news representam também um grande risco à estabilidade das democracias. O uso de algoritmos, pelas redes sociais, determina o tipo de conteúdo que chega até o usuário, o que é muito problemático, pois separa a população em nichos, acentuando, assim, a polarização social e política. Com a separação das pessoas em grupos de afinidades, os valores da comunhão, solidariedade e respeito à opinião do próximo vão se perdendo. Nesse aspecto, os discursos radicais vão se enraizando e, aos poucos, as pessoas vão perdendo a sua capacidade de dialogar com as outras pertencentes a nichos diferentes.
Como conclusão, o documentário aponta para uma necessidade de mudança, com uma redefinição do papel dessas plataformas no cotidiano dos indivíduos, havendo um projeto humanizado onde os seres humanos não sejam uma forma de extração.
Essa redefinição pode ser realizada, como proposto por Han [16], através de uma oposição “ao poder neoliberal de dominação, à comunicação e vigilância totais”, o que ele classifica como “idiotismo”, que se contrapõe à “inteligência”, que, como exposto, é limitada pelo neoliberalismo. Para ele, a inteligência “habita o horizontal enquanto o idiota toca o vertical, na medida em que abandona a inteligência, ou seja, o sistema predominante” [17].
Em resposta à pergunta inicial, o problema, portanto, não está nas redes sociais, mas no seu uso como um instrumento silencioso de poder, que adoece, manipula, vicia e vigia, a todo momento, seus usuários. Essa nova forma de controle, utilizada pelas redes sociais, faz uso das técnicas do neoliberalismo, apontadas por Han, por meios das quais, como exposto, explora-se a liberdade do indivíduo, através de um “poder inteligente” e com uma “psicopolítica”, que agem dessa forma tácita e eficiente, em um constante “pan-óptico digital”.
Referências Bibliográficas
[1] MUSE TV. THE SOCIAL DILEMMA | Talking with Director Jeff Orlowski. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=gJcMB5U9tQM> Acesso em: 26 set. 2020.
[2] NETFLIX. Em busca dos corais. Disponível em: <https://www.netflix.com/title/80168188> Acesso em: 26 set. 2020.
[3] CHAMPIONS OF THE EARTH. Jeff Orlowski, Campeão da Terra em 2017 na categoria “Inspiração e Ação”. Disponível em: < https://www.unenvironment.org/championsofearth/pt-br/jeff-orlowski-campeao-da-terra-em-2017-na-categoria-inspiracao-e-acao> Acesso em: 26 set. 2020.
[4] HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. BH: Âyiné, 2018, p. 11.
[5] Ibidem, p. 16.
[6] Ibidem, p. 108.
[7] ORWELL, George. 1984. SP: Companhia das Letras, 2009.
[8] HAN, Byung-Chul. Op. cit., p. 25.
[9] Ibidem, p. 22.
[10] Ibidem, p. 78.
[11] Ibidem, p. 56. Cumpre esclarecer que, na obra 1984 de George Orwell, o Ministério da Verdade é o departamento do Governo responsável por alterar os documentos e estatísticas oficiais, jornais, revistas, livros e demais fontes da história, de modo a reescrever o passado do país, de acordo com a ideologia do Partido Totalitário. Trata-se, assim, de poderosa ferramenta de controle e manipulação da memória da população.
[12] Ibidem, p. 80.
[13] Ibidem, p. 14.
[14] SIMÕES, Nataly. Após irem às ruas por direitos trabalhistas, entregadores de aplicativo planejam nova greve. In: Alma Preta. Jornalismo Preto e livre. Disponível em: <https://www.almapreta.com/editorias/realidade/apos-irem-as-ruas-por-direitos-trabalhistas-entregadores-de-aplicativo-planejam-nova-greve>Acesso em: 26 set. 2020.
[15] HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. BH: Âyiné, 2018, p. 115.
[16] Ibidem, p. 113.
[17] Ibidem, p. 114.