*Por Alexandre Salgado Dourado Martins, Procurador do Trabalho e mestrando em Direito do Trabalho e Previdenciário no PPGD da UERJ

O Dilema das redes sociais
Recentemente inaugurou na Netflix o documentário chamado “O Dilema das redes sociais”, que mostra os bastidores das empresas de mídia, que nós, meros usuários, desconhecíamos. Atualmente ele é debatido em várias reportagens de jornais e no contexto dos próprios grupos familiares e de amigos, diante da surpresa e espanto dos telespectadores, quando terminam de assistir ao filme.
Praticamente contado por ex-funcionários de alto escalão das empresas de mídia do Vale do Silício, o documentário demonstra como os programas de mídia social (Facebook, Twiter, Google, Instagram, …) manipulam os usuários, especialmente por meio de algoritmos. Influência nas eleições do país, instigação para conflitos sociais, vício, depressão, obsessão para realizar cirurgias faciais e até suicídio são alguns dos problemas causados pelo uso dos referidos programas.
O dito dilema das redes sociais, posto ao final do filme, refere-se à questão ainda não solucionada de como se libertar das redes sociais a que todos encontram-se já viciados.
Mas um dos pontos centrais levantados que horroriza a todos os expectadores e os profissionais do direito é o modo pelo qual as empresas de mídia obtêm o lucro pelos programas por elas criados e o esclarecimento nítido do real objeto do trabalho e da mercadoria. Para melhor explicar, necessário tecer alguns comentários breves sobre o processo de trabalho para Marx[1].
Processo de trabalho na teoria de Marx
Para Marx, o capitalista compra a força de trabalho do trabalhador para que ele trabalhe, ou seja, o trabalho é a utilização da força de trabalho. E o trabalho é incorporado na mercadoria, transmudando-se em valor de uso.
O trabalho é então um processo entre o homem e a natureza, em que o homem por meio de suas ações medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza, apropriando-se da matéria natural para criar valor de uso, satisfazendo as necessidades básicas dos seres humanos.
O processo do trabalho compõe-se, assim, de momentos simples, abrangendo: a) a atividade orientada a um fim (pôr teleológico), que é o trabalho propriamente dito; b) seu objeto; c) os meios.
O objeto do processo do trabalho são todas as coisas da natureza preexistentes, independentes da interferência humana, extraídos da terra e da água. Logo, todas as coisas que o trabalho apenas separa de sua conexão imediata com a totalidade da terra são, por natureza, objetos de trabalho preexistente.
Já o meio de trabalho são as ferramentas utilizadas pelo homem para realizar o trabalho sobre o objeto. O homem utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas para fazê-las atuar sobre o objeto de trabalho, de acordo com o seu propósito (teor teleológico).
O processo do trabalho encerra-se com a criação do produto (mercadoria), sendo este a transformação do objeto do trabalho, que passa a ter um valor de uso. Diz-se que o trabalho se incorporou ao objeto (o trabalho está objetivado), ao passo que o objeto está trabalhado.
Mercadoria obtida é um objeto externo, uma coisa, que por meio de suas propriedades, satisfaz as necessidade humanas de qualquer tipo. Em outras palavras, é o objeto do trabalho mediado pelo trabalho humano, com valor de uso e com valor de troca.
Explicado de forma sumária o processo do trabalho com todos seus componentes, qual seria o objeto do trabalho e a mercadoria para as empresas de mídia social?
Objeto do trabalho e mercadoria no processo produtivo das empresas de mídia social
Era relativamente notório que as empresas de mídia social utilizavam os elementos padrões do processo produtivo capitalista. No seu caso, a partir de códigos hexadecimais, algoritmos e base de dados (documentos, fotos, músicas), podendo ser considerados como objeto do trabalho, por meio de programas de linguagem computacional, computadores e redes (meios de trabalho), criavam o produto final, ou seja, o próprio aplicativo que será usado por milhões de usuários no globo.
Nesse contexto, os diversos profissionais (programadores, analistas de sistemas, gerentes de mídia, de marketing, projetistas, etc.), responsáveis pelo trabalho, apropriar-se-iam da matéria natural para criar valor de uso, satisfazendo as necessidades básicas dos usuários. O pôr teleológico do trabalho seria, a princípio, a construção de um “software”, que teria valor de uso para o homem, satisfazendo suas necessidades básicas de lazer, comunicação, diversão, educação e tantos outros.
Qual seria então o valor de troca destes “softwares”? Como o valor de troca, na esteira de Marx, é a grandeza do valor da mercadoria e calculada proporcionalmente à quantidade de trabalho realizado na mercadoria, algum há de existir, pois houve trabalho no processo produtivo. Ademais, é pelo valor de troca, que o capitalista obtém seu lucro.
Poderíamos pensar em valor de troca se o software fosse pago pelos usuários, pois, desta forma, a empresa de mídia venderia seu produto em troca de dinheiro. Ocorre que, salvo algumas exceções pontuais, a maioria dos “softwares” de mídia social são gratuitos, podendo ser baixados livremente pelos usuários e sem necessidade de pagamento de qualquer mensalidade.
Neste momento entra em cena o alvoroço apresentado pelo filme “O Dilema das redes sociais”: a mercadoria não é simplesmente o “software”, mas especialmente o seu usuário.
O pôr teleológico não é apenas a construção do programa de mídia social, mas sim implantar todos os meios possíveis para manipular e modular o usuário para propósitos específicos, voltados para compra de produtos de empresas anunciantes. Explica-se assim qual é o real valor de troca da mercadoria e como as empresas de mídia, capitalistas que são, ganham dinheiro.
Esse pôr do fim sobre a consciência dos usuários pode até lembrar o chamado pôr teleológico de segunda ordem de Lukács[2], pelo qual o ser humano tenta modificar o comportamento de outro indivíduo, para que este aja conforme o fim almejado pelo primeiro. Todavia, o seu pensamento foi voltado para o trabalho coletivo, realizado por meio de uma cooperação de pessoas, induzindo este grupo de trabalhadores a realizar pores teleológicos específicos, em prol da produção da mercadoria. A manipulação aqui discutida não ocorre na consciência do trabalhador para a realização do trabalho, mas na consciência do usuário, induzindo-o ao consumo.
As empresas de mídia vendem a sua mercadoria, que não é o “software”, mas sim o seu usuário, aos seus clientes, que são as empresas anunciantes de bens e serviços. Logo, na verdade, os indivíduos que utilizam descontraidamente o “software”, não são os clientes das empresas de mídia, mas sim a própria mercadoria.
Por sua vez, os anunciantes de bens e serviços pagam às empresas de mídia para que estas manipulem e viciem ao máximo os usuários a comprarem seus produtos anunciados no software. Conforme informação extraída do próprio filme, as empresas das redes sociais dão a garantia aos clientes (anunciantes) de que o anúncio publicado será bem-sucedido.
Essa garantia dá-se por meio de algoritmos que rastreiam o que cada usuário faz, para onde vai, o que compra, do que gosta, enfim, todos seus hábitos, viciando-os de todas as formas para continuarem acessando o aplicativo, e então lhes apresenta anúncios de acordo com seu padrão, com o propósito de aumentar a probabilidade de venda do produto do anunciante. Chama-se tecnologia persuasiva.
Logo, o trabalho no processo produtivo é objetivado não somente no “software”, mas também no usuário, que é transformado constantemente para o perfil desejado pelos anunciantes dos produtos, para então lhes ser vendido como mercadoria.
Considerações finais
Não se nega a importância tecnológica das empresas de mídia social para a humanidade, diante da facilidade para as pessoas em diversos pontos do globo poderem se comunicar entre si, trocar ideias, fotos, conversas, reuniões audiovisuais, tudo em tempo real.
No entanto, como explicado, a meta principal dessas empresas não é simplesmente a construção do “software”, mas a manipulação dos seus usuários, fazendo com que eles fiquem o máximo de tempo possível conectados, visualizando os produtos das empresas anunciantes, já escolhidos previamente por algoritmos de acordo com seus perfis específicos.
Tais propagandas direcionadas aos usuários já existiam desde o início do século XX com a criação da radiofonia e, logo em seguida, da televisão, no entanto elas eram apresentadas aos expectadores de forma coletiva, ou seja, não eram elaboradas especificamente para cada indivíduo de acordo com seu perfil, hábitos e gostos pessoais. O grau de manipulação ou indução era raso. Não é o que ocorre hodiernamente com as empresas de redes sociais.
É importante registrar ainda que a atividade econômica realizada por essas empresas de mídia social é lícita e, por consequência, o trabalho realizado pelos seus vários profissionais.
No entanto, esse mesmo princípio da livre iniciativa entra em conflito com o princípio da liberdade individual dos usuários de não serem manipulados inconscientemente, entrando num processo vicioso imperceptível, um buraco negro. Aliás, mesmo sabendo de antemão da existência destes algoritmos, os próprios empregados dessas empresas declararam no filme em comento que, na qualidade de usuários, eram viciados no “software” que eles mesmos ajudaram a criar. A perversidade do capital da mídia não faz essa diferenciação, atingindo, inclusive, seus próprios empregados.
Portanto, mostra-se recomendável estudar a possibilidade de o Estado limitar a manipulação exercida pelas empresas de mídia sobre os usuários de seus programas, para que os indivíduos tenham um mínimo de autodeterminação informativa e respeito à sua privacidade, que inclusive já são enquadrados como fundamentos da lei geral de proteção de dados pessoais (art. 2 da lei 13.709, de 14.08.2018).
É interessante que os usuários das redes sociais parecem não se importar com as constantes intervenções durante o dia por meio de notificações audiovisuais em seus celulares, devido a tantos atrativos oferecidos pelas empresas de mídia social, mas se as mesmas interferências diárias ocorressem por chamada telefônica, haveria uma insurgência coletiva.
Um passo inicial para mudar essa realidade poderia ser a vedação de as empresas notificarem constantemente os usuários, apresentando anúncios, sugestões ou notícias, com o intuito de mantê-los permanentemente conectados, sem sua prévia autorização expressa.
De todo modo, não basta uma intervenção estatal para restringir essa manipulação exercida pelas empresas de mídia, sendo imprescindível que os usuários conscientizem-se que estão sendo dominados e diminuam, paulatinamente, o uso intensivo das redes sociais.
Soluções difíceis para esse dilema social.
Referências bibliográficas
[1] MARX, Karl. “O Capital. Crítica da economia política. Livro I – O processo de produção do capital”, traduzido por Rubens Enderle. 1ª edição, São Paulo: Boitempo editorial, 2013.
[2] LUKÁCS, György. “Para uma ontologia do ser social II”, traduzido por Nelio Schneider., Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. 1ª edição, São Paulo: Boitempo editorial, 2013.