Dispensa coletiva e automação: o divisor de águas que deveria ser enfrentado pelo STF

*por Fernanda Cabral de Almeida, Mestre em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ), Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-Rio e servidora do TRT/RJ da 1ª Região, e Valéria Gerber Mariscal, Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ), Pós Graduação Lato Sensu na EMERJ e servidora do TRT da 1ª Região.

Na última semana, no plenário virtual do STF, o Ministro Marco Aurélio, Relator do Recurso Extraordinário sobre a validade da dispensa em massa feita pela Embraer em 2009 sem negociação coletiva prévia[1], votou no sentido contrário ao entendimento consolidado no TST[2], segundo o qual “a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores”[3].

Ainda que se esteja longe de uma solução, especialmente em virtude do pedido de destaque feito pelo Ministro Dias Toffoli, a questão é de ampla relevância, não apenas em razão do momento em vivemos, de crise econômica e de grandes e profundas mudanças no mercado de trabalho, mas também em razão da inserção, na CLT, do artigo 477-A[4] pela Reforma Trabalhista[5], que, igualmente, suplanta a tese do TST definida a partir do caso Embraer e também aguarda apreciação pelo Supremo em controle concentrado de constitucionalidade (ADI 6142).

A dispensa coletiva[6] é aquela que, por sua natureza, tem por finalidade diminuir o número de empregados e que é calcada em motivos objetivos, sejam eles técnicos, econômicos, conjunturais ou, ainda, tecnológicos. Em outras palavras, suas razões são externas às relações de trabalho individualmente consideradas. Justamente em decorrência dessa objetividade, diz-se que a dispensa coletiva é afeta ao Direito Coletivo do Trabalho, e não ao Direito Individual do Trabalho, o que levou o TST a firmar seu entendimento quanto à imprescindibilidade da via negocial coletiva.

As repercussões das dispensas em massa extrapolam a esfera privada de cada trabalhador e atingem a coletividade, não só da categoria, mas, em muitos casos, da própria comunidade em que se inserem. Observe-se, por exemplo, o caso do Município de Camaçari, na Bahia, que já aguarda os impactos do fechamento da planta da Ford na economia local.

Mas, voltando aos trilhos, o que diz o Ministro Marco Aurélio em seu voto?

Basicamente, calca-se em três fundamentos: (i) no princípio da legalidade, entendendo que as hipóteses em que é obrigatória a negociação coletiva são unicamente aquelas indicadas no artigo 7º da Constituição (redução de salário, duração do trabalho e jornada em turnos ininterruptos de revezamento); (ii) na autonomia da vontade e, consequentemente, no poder potestativo do empregador de dispensar seus empregados; e (iii) na inevitável saída pela via compensatória quando diante de dispensa em massa “por motivo singular e comum a todos, ante a necessidade de o ente empresarial reduzir definitivamente o quadro de empregados, presentes razões de ordem econômica e financeira”. E enfatiza: para a situação de ter que implementar o enxugamento dos postos de trabalho a fim de fugir “à morte civil, à falência”, existe a verba compensatória, não devendo ser colocados outros obstáculos à dispensa.

No caso concreto, a empresa, solapada pela crise financeira de 2008, dispensou mais de 4 mil trabalhadores sem qualquer negociação com o sindicato e tal informação é extremamente relevante, justamente por integrar a razão de decidir do voto.

Em um sistema de obediência a precedentes, tal como o que se pretendeu incrementar com a entrada em vigor do novo CPC[7], o conhecimento do caso concreto é de extrema importância para a aplicação das normas que surgem dos julgamentos. Por isso, são “as razões determinantes da solução do caso ou da interpretação conferida à lei que assumem relevo quando se tem em conta uma decisão que, além de dizer respeito aos litigantes, projeta-se sobre todos e passa a servir de critério para a solução dos casos futuros”[8].

Neste sentido, deve-se dissociar, no precedente, o que constitui razão de decidir (ratio decidendi) e o que constituem meras “considerações marginais estranhas à decisão do caso”[9] (obiter dictum).

A razão econômica e financeira aparece como fundamento determinante na decisão do Ministro Marco Aurélio e, também, no voto do Ministro Alexandre de Moraes[10], que acompanhou o Relator e foi o único a votar dentre os demais Ministros.

De fato, aquele que está “à beira da falência” não tem muitas condições de negociar ou de ofertar qualquer vantagem ou compensação superior à prevista em lei aos seus empregados despedidos. Contudo, não podemos esquecer que não são apenas crises econômicas e dificuldades financeiras que levam à extinção em massa de postos de trabalho e é por isso que esse fundamento tem tanta importância.

Uma das razões que podem levar à dispensa coletiva é a automação, caracterizada como sendo a aplicação de ferramentas tecnológicas na produção com o intuito de aumentar a produtividade, substituindo o trabalho humano[11]. Tal processo, que já vinha ocorrendo desde os anos 1970, passa a se acelerar diante da velocidade em ritmo exponencial – e não linear – dos avanços tecnológicos, resultado de um mundo multifacetado e profundamente interconectado em que vivemos, com novas tecnologias que geram outras mais qualificadas, levando a mudanças de paradigmas sem precedentes na economia, nos negócios, na sociedade e nos indivíduos, transformando sistemas inteiros de produção dentro dos países e as relações dos países entre si, como afirma Klaus Scwab, fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial.[12]

Em decorrência dessa transformação é que diversas previsões pessimistas em relação à extinção de postos de trabalho têm sido feitas, como por exemplo, em relatório publicado por Carl Benedikt Frey e Michael Osborne, pesquisadores vinculados à Universidade de Oxford, intitulado “The future of employment: How suscetible are Jobs to computerisation?”, no qual afirmam que 47% do total de 702 profissões estariam ameaçadas pelas inovações tecnológicas nos Estados Unidos.

No Brasil, podemos ver na prática os efeitos da automação no setor bancário com a substituição de diversas tarefas por ferramentas que utilizam inteligência artificial, o fechamento de agências físicas e o investimento em agências virtuais com o uso de softwares cada vez mais sofisticados. Com a reestruturação realizada, diversos postos de trabalho se tornaram desnecessários, tendo sido dispensados ao menos 63.934 bancários de 2013 a 2019 e crescido sobremaneira o oferecimento de Planos de Demissão Voluntária no período.

Não se pode afirmar que tais casos, por exemplo, tenham qualquer relação com crise econômica ou com dificuldade financeira, uma vez que o setor tem aumentando constantemente seus lucros, tendo ultrapassado o difícil ano de 2020 com crédito em alta.

É inevitável, portanto, que, a prevalecer a tese da desnecessidade de negociação coletiva para dispensas coletivas no STF, se faça distinção[13] ao menos quanto aos casos em que a dispensa em massa decorre da automação, não apenas pela ausência de crise financeira ou econômica como razão objetiva da dissolução dos vínculos de emprego, mas também porque a própria Constituição prevê a proteção ao emprego em face da automação (artigo 7º, XXVII), o direito à participação dos empregados na gestão da empresa (artigo 7º, XI) e a função social da propriedade (artigo 170, III), o que sequer foi enfrentado no caso concreto.

A Constituição, ainda, valoriza a negociação coletiva como solução democrática dos conflitos (artigo 7º, XXVI), o que também foi clara opção do legislador na própria Reforma Trabalhista perpetrada pela Lei n. 13.467/2017.

Ainda em seu voto, o Ministro Marco Aurélio afirma que a indenização compensatória prevista no inciso I do artigo 7º da Constituição não é a via ideal para a proteção da relação de emprego contra a despedida injustificada e que apenas a lei pode estatuir os instrumentos protetivos.

Neste sentido, existem atualmente três projetos de lei tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que buscam regulamentar o dispositivo Constitucional. São os de nº 1.091/2019, de autoria do Deputado Wolney Queiroz (PDT/PE), de nº 2.197/2007, do Deputado Rubens Otoni (PT/GO) e de nº 4.035/2019, do Senador Paulo Paim (PT/RS). Todos mencionam a necessidade de negociação coletiva prévia à dispensa e/ou qualificação dos empregados, além de outras compensações.

Deve-se destacar, ainda, que diversos países, tais como Estados Unidos[14], Japão, China, Emirados Árabes Unidos, Canadá, Singapura, Finlândia, Dinamarca, Taiwan, França, Reino Unido, Austrália, Coreia do Sul, Suécia, Índia, México, Alemanha, Portugal e Itália, além da Comissão Europeia, criaram Planos Estratégicos de Desenvolvimento de Inteligência Artificial, demonstrando preocupação em relação ao mercado de trabalho.

A Comissão Europeia, por exemplo, prevê que, de forma preventiva, os perfis profissionais que correm o risco de terem suas funções automatizadas sejam passíveis de (re)treinamento através de uma cooperação setorial em habilidades entre empresas, sindicatos, instituições de ensino superior e autoridades públicas, com o apoio financeiro do Fundo Social Europeu. Assim, não exclui os sindicatos, como parece indicar a decisão do Ministro Marco Aurélio, mas ao contrário, os inclui como atores necessários para o crescimento do país.

Além disso, diversos países da União Europeia já trazem em sua legislação, desde a década de 1970, o direito à informação prévia, exigindo que o empresário inicie a discussão e a negociação antes de introduzir qualquer mudança nas instalações técnicas, nos postos e nos processos de trabalho, com protagonismo do sindicato, que assume papel participativo na política empresarial. É o caso, por exemplo, da Suécia (1977), da Noruega (1977), da Alemanha (1972) e da França (1982).[15]

A negociação coletiva pode ser essencial para se equalizar a intensidade e a direção dos resultados da introdução da tecnologia, minorando seus efeitos negativos. E nesse ponto os exemplos de tantos países europeus, por meio de suas leis e de seus Planos Estratégicos de Inteligência Artificial, nos fazem perceber que a participação do sindicato não está sendo utilizada para impedir a introdução da nova ferramenta, mas para permitir que os trabalhadores também possam usufruir do progresso prometido pela tecnologia, seja se requalificando, seja sendo compensado financeiramente.

A construção de uma sociedade mais justa e solidária depende do diálogo e do consenso amplo acerca de seus valores e expectativas, o que só será alcançado com a participação ativa e coletiva dos trabalhadores sobre o seu próprio futuro.


[1] Trata-se do RE 999.435, leading case sob o Tema 638 de repercussão geral.

[2] Após o voto do Relator, o Ministro Alexandre de Moraes juntou seu voto, no mesmo sentido, no plenário virtual, quando, então, o Ministro Dias Toffoli fez um pedido de destaque, o que significa que o caso sai do plenário virtual, sendo reiniciado na prática, inclusive com a possibilidade de mudança nos votos já apresentados, e incluído em pauta presencial ou em vídeo conferencia do Plenário.

[3] Dissídio Coletivo n. 0309/2009-000-15.00.4.

[4] O novo artigo da CLT estatui que “As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação”.

[5] Sobre o impacto da Reforma Trabalhista nas dispensas em massa, ver: SILVA, Felipe dos Santos. Impactos da Reforma Trabalhista na dispensa coletiva de trabalhadores. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, v. 23, n. 1, p. 77-99, 2019. Link.

[6] Já que nossa norma é aberta (artigo 477-A da CLT), ajuda-nos a conceituar a dispensa coletiva a Diretiva 98/59/CE do Conselho da União Europeia, de 20/07/1998, segundo a qual se entende por ‘despedimentos coletivos’ os despedimentos efetuados por um empregador, por um ou vários motivos não inerentes à pessoa dos trabalhadores, quando determinado número ou percentual de trabalhadores forem atingidos, segundo a escolha efetuada pelos Estados-membros.

[7] Com o CPC/2015, alterou-se substancialmente a eficácia das decisões judiciais, permanecendo a eficácia persuasiva das decisões de primeiro grau e dos acórdãos em geral, entretanto, dotaram-se de eficácia normativa em sentido forte “as súmulas vinculantes, os julgados produzidos em controle concentrado da constitucionalidade, os acórdãos proferidos em julgamento com repercussão geral ou em recurso extraordinário ou especial repetitivo, as orientações oriundas do julgamento de incidente de resolução de demanda repetitiva e de incidente de assunção de competência” (MELLO, Patrícia Perrone Campos; BARROSO, Luís Roberto. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Revista da AGU, v. 15, n. 3, p. 9-52, 2016).

[8] MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento colegiado e precedente. Revista de Processo, vol, v. 264, n. 2017, p. 357-394, 2017.

[9] MELLO; BARROSO, op. cit.

[10] Segue trecho do voto do Ministro Alexandre de Moraes: “Impor ao empregador a realização de acordo coletivo prévio em casos de dispensa em massa sem que haja um plexo normativo legal regulando o procedimento e estabelecendo suas balizas e limites, além de afrontar a legalidade e causar insegurança jurídica, pode colocar em risco a própria sobrevivência da empresa ao submetê-la a um processo de negociação de contornos indefinidos. Como visto no caso concreto, a crise econômica enfrentada pela empresa reclamava solução expedita até para que fossem preservados os contratos daqueles que permaneceriam no emprego” [grifos nossos].

[11] A automação, que é “o processo pelo qual o trabalho do homem é substituído por máquinas, que produzem de forma mais precisa, célere e econômica”, não se confunde com a mecanização. Esta última “é uma técnica que permite a extensão das funções humanas – que não a cerebral – através de um processo de fragmentação e tem como principal característica a possibilidade de repetição infinita de determinados movimentos” (BERTAGNOLLI, Danielle; RIZZOTO, Felipe; TONIAL, Maira Angélica Dal Conte. As relações de trabalho e a automação industrial: reflexões sobre os aspectos históricos, econômicos, conceituais e sociais. Revista Justiça do Direito, v. 24, n. 1, 2011).

[12] SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira. Miranda. – São Paulo: Edipro, 2016. Título original: The Fourth Industrial Revolution, p. 14.

[13] A distinção ou distinguishing é a operação pela qual se afasta a aplicação de determinado precedente quando se aprecia um caso concreto por se tratar de situação diferente. “Quatro elementos essenciais devem ser examinados e confrontados para avaliar a semelhança entre dois casos para fins de aplicação (ou não) de um precedente: i) os fatos relevantes de cada qual; ii) os valores e normas que incidem sobre cada conjunto de fatos; iii) a questão de direito que suscitam; iv) os fundamentos que justificaram a decisão do precedente e sua adequação para orientar a decisão do novo caso” (MELLO; BARROSO, op. cit.).

[14] A título de curiosidade, os EUA possuem lei federal (WARN Act) prevendo o direito ao recebimento de uma notificação prévia com 60 dias de antecedência, para casos de dispensa em massa. Ainda, ao julgar o caso Fibreboard Paper Products Corp v. Labor Board, 379 U.S. 203 (1964), a Suprema Corte do país entendeu imprescindível a negociação coletiva prévia para dispensa em massa realizada num ambiente de trabalho sindicalizado. No caso particular, a empresa havia decidido dispensar todos os empregados, para contratar integralmente empregados através de uma terceirizada. (Cf. FERNANDES, João Renda Leal. O “Mito EUA”: um país sem direitos trabalhistas? Salvador: JusPodivm, 2021, p. 185).

[15] CAVALCANTE, Jouberto de Quadro Pessoa. Sociedade, tecnologia e a luta pelo emprego. 1. edição. São Paulo: LTr, 2018.

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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