*por Juliete Lima do Ó, advogada, mestranda em Direito Social e da Inovação pela Nova School of Law (Lisboa, Portugal) e especialista lato sensu em Direito material e processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura do Trabalho da Paraíba (ESMAT 13).

Não é novidade que os algoritmos se tornaram presentes no dia a dia de quem trabalha para plataformas digitais, sobretudo para aqueles que laboram para as empresas de transporte, bem como de entrega de alimentos e bens de consumo, tais como Glovo, Uber e Uber Eats. Atualmente, os algoritmos estão sendo os novos “supervisores” dos trabalhadores, e, por isso, aumentou significativamente a precarização, que é marcada pela causalidade do trabalho, faltando, assim, uma ação do Governo Português para regular este setor, segundo declarações à agência Lusa, de Nuno Boavida, investigador do Centro Disciplinar de Ciências Sociais (CICS) da Universidade Nova de Lisboa.
Através desse novo modelo de trabalho, é possível encontrar ameaças a direitos fundamentais específicos ou inespecíficos dos trabalhadores. No caso dos direitos específicos, encontramos remunerações pagas por tarefa ou por peça, que fazem com que recebam salários muito abaixo dos valores médios pagos no mercado. Como se não bastasse, essas relações geralmente são marcadas pela ausência de limitação dos tempos totais de trabalho, inobservância de direitos coletivos, pressão pelo aumento da produtividade e cumprimento da tarefa no menor tempo possível, do que resulta um ambiente bastante desfavorável à saúde e segurança dos trabalhadores, o que incrementa também os riscos a danos físicos e psicológicos. Em relação às ameaças a direitos inespecíficos, temos a questão atinente à privacidade, que é controlada pela via eletrônica, isto é, com a supervisão por algoritmos. Os trabalhadores estão sendo substituídos por robôs ou quase transformados em robôs, uma vez que realizam atividades ou micro-atividades altamente rotineiras, monótonas e repetitivas. [1] e [2]
Muitos desses “parceiros” se submetem a trabalhar para essas plataformas porque acham que vão ter mais liberdade e flexibilidade em gerir o seu trabalho sem receber ordens diretas do empregador. Na realidade, no entanto, estão sendo monitorados a todo o instante. Segundo Teresa Moreira (Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Minho e uma das coordenadoras do Livro Verde para o Futuro do Trabalho), “a plataforma consegue controlar desde a atividade exercida, à localização, e apesar de o local de trabalho ser móvel, o seguimento é constante, passando a ser extremamente porosas as fronteiras entre local de trabalho e fora dele, continuando a gerar-se dados e a controlar mesmo quando os motoristas não estão a conduzir pois a conectividade digital é permanente e o controle praticamente total, através do cruzamento das informações recolhidas pelas plataformas e o comando exercido pelos algoritmos que podem desativar os condutores com base na avaliação dos clientes”. [3]
Nesse diapasão, a Uber pode fazer o desligamento do motorista no aplicativo caso este receba várias e consecutivas avaliações baixas, causando consequências diretas na posição que o trabalhador ocupa, bem como na possibilidade de obter uma nova tarefa. A justificativa que se apresenta é que os algoritmos se baseiam no comportamento do usuário anterior e, por essa razão, fundamentariam, muitas vezes, suas decisões de acordo com os dados históricos armazenados, conforme as avaliações realizadas pelos passageiros ou usuários anteriores. [4]
Ademais, o algoritmo utilizado pela Uber permite que o condutor, ao receber uma solicitação, tenha 15 (quinze) segundos para decidir se aceitará ou não a viagem. Em caso de aceite, o motorista terá uma avaliação ao final da corrida, através da plataforma que usa um algoritmo. É através desse sistema de decisão automática que se determinará quais condutores poderão ter as suas contas suspensas ou desativadas, seja por não terem aceitado um número considerável de viagens, ou por não conseguirem atingir uma boa pontuação. Assim, torna-se possível entender como o algoritmo é moldado pelo “software” da empresa.
Em Portugal, foi feito um projeto de investigação acerca do trabalho nas plataformas digitais, coordenado por Nuno Boavida, do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS) da Universidade Nova de Lisboa. Neste estudo, recolheram-se mais de 50 (cinquenta) entrevistas de trabalhadores que executam atividades a partir das plataformas digitais, cujo teor revelou diversas relações com estas em diferentes narrativas, abrangendo as empresas Uber, Uber Eats e Glovo, entre outras. De acordo com as entrevistas, ficou evidenciado que os trabalhadores que prestam suas atividades para a Glovo e Uber Eats se assumem como empregados. No decorrer do projeto, verificou-se a existência de muitos imigrantes laborando nesse subsetor marcado pela precariedade. Ademais, a equipe ouviu múltiplos relatos de violações a direitos humanos, abusos laborais, bem como o subaluguel de contas para contornar contextos de imigração ilegal. Foi relatado, ainda, que o normal para um estafeta (leia-se entregador) seria laborar de 10 (dez) a 12 (doze) horas em média por dia, e de 6 (seis) a 7 (sete) dias por semana, restando claro que este trabalhador possui uma jornada de trabalho praticamente ilimitada.
Da mesma forma acontece com os motoristas, segundo refere em entrevista concedida à agência Lusa o investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Giovanni Allegretti, que coordena a equipe portuguesa de um outro projeto europeu de investigação sobre plataformas digitais. Ao entrevistar os trabalhadores, estes mencionaram que, às vezes, “o dia de trabalho ultrapassava 12 (doze) horas”, embora a Lei n.º 45/2018 (Regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica), criada para regular esse setor, proíba os motoristas de TVDE (transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica) de operar veículos por mais de 10 (dez) horas de trabalho dentro de um período de 24 (vinte e quatro) horas, independentemente do número de plataformas nas quais o condutor preste serviços, conforme seu artigo 13.º.
Nesse sentido, a Uber foi questionada pela agência Lusa, sendo que a fonte oficial da empresa se pronunciou sobre o tema e garantiu que tanto os operadores como os motoristas, bem como os veículos na plataforma, “cumprem todos os requisitos exigidos por lei”, e reitera que, desde junho de 2018, a plataforma possui uma ferramenta, a qual certifica que nenhum motorista pode conduzir mais do que 10 (dez) horas por dia. Porém, o dirigente sindical do STRUP (Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal) Fernando Fidalgo, afirmou, em entrevista ao jornal Sapo, a existência de motoristas de TVDE a trabalharem quase 17 (dezessete) horas por dia para “subsistirem”, quando a lei define que o período máximo semanal seja de 40 (quarenta) horas, conforme o artigo 203.º, nº.1 do Código de Trabalho português, o que contradiz mais uma vez a alegação da empresa.
Com relação à Uber Eats, a mesma fonte oficial da empresa referiu que os estafetas (entregadores) podem escolher “livremente quando, onde e por quanto tempo querem estar ligados à aplicação”, ressaltando ainda que todos os trabalhadores devem possuir, além dos requisitos (documento de identificação: Cartão Cidadão da União Europeia ou Título de Residência ou Passaporte mais Certificado de Registro de Manifestação de Interesse que comprove que já deu entrada na sua legalização em Portugal, bem como demonstrar que o veículo no caso moto ou carro estar coberto por uma apólice de seguro), carta de condução válida, atividade aberta (para exercer uma atividade independente ou caso seja chamado para trabalhar em um emprego que precise emitir fatura, deve comunicar o início da atividade ao Serviço de Finanças, equivalente à Receita Federal do Brasil) e certificado de registro criminal sem antecedentes. Já no que se refere à possibilidade do subaluguel de contas da Uber Eats, a mesma fonte oficial da empresa comentou que os estafetas precisam tirar uma fotografia em modo selfie “antes de ficarem on-line”, cuja imagem será cruzada com a fotografia de perfil do utilizador, de forma a viabilizar a certificação de que realmente se trata da mesma pessoa. A Glovo declarou, através do seu diretor de Portugal, Ricardo Batista, em entrevista à agência Lusa, que os estafetas procuram na plataforma “uma alternativa flexível para gerarem rendimentos, em muitos casos em combinação com outras atividades ou enquanto estão em formação ou à procura de outro emprego”.
Vale ressaltar que a Constituição da República Portuguesa consagra, no artigo 59º, que todos os trabalhadores têm direito ao repouso e aos lazeres, havendo um limite máximo da jornada de trabalho, direito ao descanso semanal e, na alínea b, o direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, conforme se depreende de um dos deveres do empregador previsto no artigo 127.º, n.º 3 do Código de Trabalho português, que diz: “[o] empregador deve proporcionar ao trabalhador condições de trabalho que favoreçam a conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal”.
Ademais, a socióloga Ana Alves da Silva, especialista em relações de trabalho, nota que, com as plataformas, as típicas funções de supervisão e monitorização de uma empresa estão a ser substituídas “por uma arquitetura automática, algoritmizada”. Ainda ressalta que “quanto mais liberalizado for o mercado de trabalho e maior o nível de desemprego e situação de privação e precariedade económica maior será o poder destas plataformas no mercado de trabalho”, segundo afirmou em entrevista concedida ao Dnotícias.
Dessa forma, a OIT é a favor da regulamentação dos algoritmos utilizados pelas plataformas digitais. Na conferência de Alto Nível sobre o Futuro do Trabalho, intitulada “Trabalho remoto: Desafios, Riscos e Oportunidades”, realizada em modo telepresencial, no dia 9 de março do corrente ano, o diretor-geral da OIT, Guy Ryder, reiterou a necessidade de transparência e fiscalização dos algoritmos que geram a prestação de trabalho nas plataformas digitais e mencionou ainda que “o trabalho não é uma mercadoria, os trabalhadores não são robôs ou computadores, nem devem ser geridos por eles. Os algoritmos incorporam os pressupostos, preconceitos e interesses – potencialmente, ou não – daqueles que os criam, e dão pouca margem para identificar e resolver disputas e queixas. Estas são questões que precisam de ser resolvidas rapidamente”. [5]
Por fim, o Governo Português apresentou no último dia 31 de março de 2021 o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho [6], em reunião, com o Conselho Permanente de Concertação Social que ocorreu por videoconferência. O livro tem a finalidade de “transformar incertezas em oportunidades”, e seu objetivo é regulamentar as novas formas de trabalho e responder aos desafios da classificação das relações de emprego, em particular das plataformas digitais e do teletrabalho. Outrossim, o governo reitera a intenção de “haver uma presunção das condições objetivas da prestação do trabalho e promover, mesmo nos casos em que não há trabalho subordinado, o acesso à proteção social e a condições de saúde e segurança do trabalho”.
Notas:
[1] COMISSÃO EUROPEIA. Unpacking the gig economy, EU, 2016, p. 31.
[2] Da mesma forma que acontece com a empresa Amazon Mechanical turk ocorre com a Uber, por exemplo. É através do sistema de algoritmos que se criam novas ferramentas de como controlar e vigiar os trabalhadores à distância. Todavia, o programa informático da plataforma não obedece às regras de transparência e, por essa razão, acaba substituindo o controle direto e tradicional por um controle mais intenso. É fato que, no caso da plataforma da Uber, o controle existe de diversas formas, desde o momento em que o motorista aceita uma corrida, abrangendo, ainda, o controle sobre o tipo de veículo que é utilizado por este, passando até mesmo por uma inspeção para verificar se o carro se encontra limpo ou se existem arranhões. Cf. ROSENBLAT, Alex; STARK, Luke. Algorithmic Labor and Information Asymmetries: a case study of Uber´s drivers. International Journal of Communication, n.º 10, 2016.
[3] Para maiores informações acerca do tema, verificar MOREIRA, Teresa Coelho. A privacidade dos trabalhadores e as novas tecnologias de informação e comunicação: contributo para um estudo dos limites ao poder de controlo eletrónico do empregador.Coimbra: Almedina, 2010. Da mesma autora, conferir Estudos de Direito do Trabalho, reimp. da primeira edição. Coimbra: Almedina, 2016, e também Estudos de Direito do Trabalho, vol. II. Coimbra: Almedina, 2016.
[4] BAROCAS e SELBST, “Big Data’s Disparate Impact. California Law Review, 671, 2016, p. 682 e ss. Nesse mesmo seguimento WACHTER, Sandra; MITTELSTADT, Brent; FLORIDI, Luciano. Why a right to explanation of automated decision-making does not exist in the general data protection regulation”. International Data Privacy Law, 2017. “Neste estudo, os autores argumentam sobre a importância de existir um órgão independente que tenha a finalidade de analisar as decisões tomadas pela inteligência artificial, e que assim possam fazer uma comparação acerca da eventual discriminação por parte da IA, bem como indicar os lugares que mais se presenciam casos de discriminação por algoritmos.
[5] CAETANO, Maria. Dinheiro vivo: Bruxelas diz que direito a desligar deve ser definido por setores ou empresas. Disponível em: <https://www.dinheirovivo.pt/economia/bruxelas-diz-que-direito-a-desligar-deve-de-ser-definido-por-setores-ou-empresas-13435774.html>, acesso em: 30 de março de 2021.
[6] Livro Verde: é um documento publicado pela Comissão Europeia destinados a promover uma reflexão a nível europeu sobre determinado assunto especial. Disponível em: < https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/green_paper.html?locale=pt >, acesso em: 30 de março de 2021
Referências:
PORTUGAL. Lei n.º45/2018. Diário da República n.º 154/2018, Série I de 2018-08-10. Disponível em: <https://dre.pt/home/-/dre/115991688/details/maximized>, acesso em: 30 de março de 2021
PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Decreto de aprovação da Constituição. Diário da República n.º86/1976, Série I de 1976-04-10. Disponível em: < https://dre.pt/legislacao-consolidada/-/lc/34520775/view>, acesso em: 30 de março de 2021
PORTUGAL. Código do Trabalho. Diário da República n.º 7/2009, Série I de 2009-02-12. Disponível em: <https://dre.pt/legislacao-consolidada/-/lc/34546475/view>, acesso em: 30 de março de 2021.
ESQUERDA. Plataformas digitiais: “O capataz passou a ser o algoritmo”. Disponível em: <https://www.esquerda.net/artigo/plataformas-digitais-o-capataz-passou-ser-o-algoritmo/73155>, acesso em: 30 de março de 2021.
Jornal I. SAPO. Motoristas de TVDE trabalham quase 17 horas por dia. Disponível em: <https://ionline.sapo.pt/artigo/726222/motoristas-de-tvde-trabalham-quase-17-horas-por-dia-?seccao=Portugal_i>, acesso em: 30 de março de 2021
Agência Lusa. DNOTICIAS. Precários e reféns do algoritmo: assim trabalham os estafetas da glovo e uber eats. Disponível em: <https://www.dnoticias.pt/2021/3/5/253033-precarios-e-refens-do-algoritmo-assim-trabalham-os-estafetas-da-glovo-e-uber-eats>, acesso em: 30 de março de 2021.
Executive Digest com Lusa. SAPO. Governo apresenta hoje Livro Verde do Futuro do Trabalho aos parceiros. https://executivedigest.sapo.pt/governo-apresenta-hoje-livro-verde-do-futuro-do-trabalho-aos-parceiros/, acesso em: 05 de abril de 2021.
DO Ó, Juliete. MIGALHAS. A proposta da Lei Uber em Portugal: um importante passo para o fim da precarização do trabalho das plataformas digitais. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/339327/a-proposta-da-lei-uber-em-portugal>, acesso em: 30 de março de 2021.
SÁ DA BANDEIRAS, Pedro. 2021 PORTUGAL. O futuro do trabalho em debate com oradores internacionais. Disponível em: <https://www.2021portugal.eu/pt/noticias/o-futuro-do-trabalho-em-debate-com-oradores-internacionais/>, acesso em: 30 de março de 2021.