A POTENCIALIZAÇÃO DO TELETRABALHO NA PANDEMIA: A INCLUSÃO DO EMPREGADO NO CAPÍTULO DA JORNADA DE TRABALHO

Carlos Augusto Pinto de Vasconcellos Junior, especialista em Direito e Processo do Trabalho (UCAM) e Advocacia Pública (UERJ), especializando em Direito do Trabalho e Previdenciário (UERJ), pesquisador na Clínica de Direito do Trabalho da UFPR – Trabalho e Direitos, advogado licenciado e Assessor Jurídico no MPT/RJ.

Imagem: Pixabay

Busca-se abordar as peculiaridades da jornada de trabalho do teletrabalhador celetista, com a finalidade de responder a seguinte pergunta: o teletrabalhador poderá ser inserido no capítulo da jornada de trabalho?

Esclareça-se, inicialmente, que os aspectos relacionados ao teletrabalho foram inseridos, de maneira insuficiente e incoerente, na CLT[1], pela reforma trabalhista de 2017, muito embora o artigo 6º tenha sido modificado, inclusive com a inclusão do parágrafo único, no ano de 2011. Atualmente, o tema em análise também está previsto na Medida Provisória 1.046/2021[2].

Basicamente, a legislação dispõe que o teletrabalhador foi excluído do capítulo que trata da duração do trabalho, ainda que a atividade esteja umbilicalmente ligada com a constante e incisiva fiscalização, praticada pelo empregador.

É fato público e notório que a pandemia potencializou a utilização desse regime de trabalho, inclusive por causa das restrições impostas pelos Governantes, ocasionando, por exemplo, casos de excesso de jornada e de cobranças corriqueiras tanto dentro quanto fora da jornada regular de trabalho, até mesmo pela necessidade constante de troca de informações, por meio de comunicações eletrônicas, telefonemas e reuniões virtuais.

Como visto acima, a legislação excluiu o teletrabalhador do capítulo que trata da jornada de trabalho, além de ter previsto, recentemente, que “o tempo de uso de equipamento tecnológicos e de infraestrutura necessária, assim como de software, de ferramentas digitais ou de aplicações de internet utilizados para o teletrabalho fora da jornada de trabalho normal do empregado, não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou em acordo ou convenção coletiva de trabalho”[3].

Infere-se do referido artigo que o legislador finalmente observou a regra prevista na Constituição[4] e nas Normas Internacionais[5], de modo a considerar que o teletrabalhador também é um ser humano e tem direito a limite de horário de trabalho, ainda que suposta e contraditoriamente excluído do capítulo da jornada de trabalho. Ou seja, a recente Medida Provisória deixou ainda mais claro que o empregador vai ter que fiscalizar a jornada de trabalho, pois, caso assim não fosse, seria inviável, na prática, a limitação da referida jornada.

Relembre-se, então, que os principais fundamentos para afastamento do teletrabalhador do referido capítulo da CLT, conforme extraído do parecer substitutivo, da lavra do Relator da reforma trabalhista e ex-Deputado Federal Rogério Marinho[6], foram os seguintes: a) redução de custos; e b) evitar autuações e ações judiciais. Por outro lado, não consta, em nenhuma passagem do referido parecer, a impossibilidade de fiscalização da jornada de trabalho.

Embora essa situação esteja legalmente prevista, de forma diversa ao que acontece na realidade fática, as consequências dessa exclusão são deletérias e os impactos já estão sendo percebidos, por cada teletrabalhador, no dia a dia de trabalho, por conta da constante fiscalização, bem como – a título meramente exemplificativo, já que existem tantos outros direitos no referido capítulo da CLT –, da jornada suplementar, sem o correspondente pagamento dos direitos legalmente previstos.

Faz-se, pois, duas reflexões: 1) como o empregador vai observar a “jornada de trabalho normal do empregado” e não realizará a fiscalização? 2) como o empregado vai trabalhar “com a utilização de tecnologias de informação e comunicação”[7] e não será fiscalizado?

Vê-se, pois, que não há qualquer lógica nessa previsão legal, uma vez “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”[8]. Tanto é assim que nem mais se discute a configuração do vínculo de emprego nessa modalidade de trabalho, assim como que, ao menos desde a recente alteração legislativa, ficou evidente a limitação da jornada.

Contudo, a situação ainda consegue piorar, já que esse tipo de fiscalização é até mais exata e incisiva do que aquela realizada presencialmente, sendo possível verificar a hora que a pessoa começou e terminou de trabalhar, o que ela produziu, os momentos em que estava logada e deslogada, não em outro dia, semana ou mês, mas sim naquele exato momento.

Aliás, o próprio Relator da reforma trabalhista, anteriormente citado, expressa essa mesma ideia, ao mencionar, em seu parecer substitutivo, que “o empregado pode gerar resultados mais efetivos com o teletrabalho do que se estiver fisicamente na sede da empresa”, posto que “o desenvolvimento tecnológico atual permite a realização de tarefas independentemente de onde o trabalhador esteja, diante da alta conectividade e dos recursos que permitem o acesso remoto e seguro aos dados empresariais, sendo possível o envio de e-mails, o acesso de arquivos que se encontrem na empresa, a realização de reuniões por teleconferência, ou seja, instrumentos suficientes para que o trabalho seja realizado sem quaisquer comprometimentos”. Acrescentou, ainda, que seria garantido “ao empregado a percepção de todos os direitos que lhes são devidos”[9].

Isso quer dizer que a fiscalização existe e, inevitavelmente, será colocada em prática, salvo para quem não sabe ou finge não saber mexer nos sistemas informatizados, porém essa situação em nada afeta a possibilidade de fiscalização pelo empregador, precisa e momentânea, e esse deve ser o ponto de partida para interpretação desse debate.

Então, a ideia, aqui defendida, é exatamente igual àquela prevista para os trabalhadores externos: há ou não possibilidade de fiscalização?

No caso dos teletrabalhadores, há, sim, como regra, a possibilidade de fiscalização da jornada de trabalho, por conta da imposição do próprio sistema, motivo pelo qual o teletrabalhador não estará excluído do capítulo da duração do trabalho, em razão do previsto no próprio artigo 6°, parágrafo único da CLT, salvo se o empregador demonstrar a impossibilidade de fiscalização.

Por conta disso, em observância à interpretação sistemática e os princípios da norma mais favorável e da primazia da realidade, é plenamente possível considerar que a impossibilidade de fiscalização é medida excepcional, e como tal, deverá ser demonstrada, objetivamente, pelo empregador, caso essa situação seja judicializada ou, até mesmo, à Fiscalização do Trabalho e ao Ministério Público do Trabalho (MPT)[10].

Caso o entendimento, no caso concreto, seja pela atribuição indevida do ônus da prova ao teletrabalhador, além da possibilidade de utilização das medidas cabíveis para corrigir essa incoerência, também poderá pleitear a inversão do ônus da prova[11], assim como, a depender da situação, a realização de perícia.

A propósito, como mencionado por LASSALLE, o legislador tentou transformar uma macieira em figueira, mas “a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desses frutos, destruiriam estes a fábula produzindo maçãs e não figos”[12]. Atualmente, com mais precisão, “como pondera com autoridade Humberto Theodoro, ‘a lei não tem força, no tratar categorias jurídicas, de contrariar a natureza das coisas. A palavra final não é a do legislador, mas a da ciência jurídica’”[13].

Isso porque, como já defendia SÜSSEKIND, “dentre os preceitos que universalizam visando à proteção do trabalho humano têm lugar de relevo os referentes à limitação do tempo de trabalho”. Acrescenta, ainda, ao menos três fundamentos para tanto: “a) de natureza biológica, porque elimina ou reduz os problemas psicofisiológicos oriundos da fadiga; b) de caráter social, por ensejar a participação do trabalhador em atividades recreativas, culturais ou físicas, propiciar-lhe a aquisição de conhecimentos e ampliar-lhe a convivência com a família; c) de ordem econômica, porquanto restringe o desemprego e aumenta a produtividade do trabalhador, mantendo-o efetivamente na população economicamente ativa”[14].

Dessa forma, é recomendável que o empregador fiscalize a jornada do teletrabalhador e não tente simular a impossibilidade de fiscalização, inclusive para evitar condenações judiciais, em processos individuais ou coletivos, além de autuações administrativas, posto que a impossibilidade de fiscalização é medida excepcional, e como tal, deverá ser cabalmente demonstrada.  Ainda, é imperioso relembrar que eventual negociação coletiva não poderá ter o objetivo exclusivo de prever renúncia a direitos, sob pena da respectiva cláusula ser anulada pelo Judiciário.

REFERÊNCIAS

[1] Artigos 62, III, 75-A ao 75-E e 611-A, VIII da CLT.

[2] Artigo 3°, § 1° da MPv 1.046/2021. Em 2020, a previsão constou no artigo 4°, §§ 1º e 5° da MPv 927/2020, que já caducou, mas nada difere da interpretação deste pequeno ensaio.

[3] Artigo 3°, § 1° da MPv 1.046/2021.

[4] Artigo 7°, XIII da CRFB/88.

[5] A título exemplificativo, artigos III, XVI.3, XXIII.1, XXIV, XXVII, XXIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 7º, “b” e “d” do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; artigo art. 7º, “e”, “g” e “h” do Protocolo de São Salvador; artigos 3º, “e” e 4° da Convenção 155, da OIT.

[6] Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1544961&filename=SBT+1+PL678716+%3D%3E+PL+6787/2016. Acesso em: 20 set. 2017.

[7] Artigo 75-B da CLT.

[8] Artigo 6º, parágrafo único da CLT.

[9] Op. Cit.

[10] VASCONCELLOS JUNIOR, Carlos Augusto Pinto de. Primeiras impressões sobre a regulamentação do regime de teletrabalho no Brasil. In: TUPINAMBÁ, Carolina (Coord.). As novas relações trabalhistas e o futuro do Direito do Trabalho: as novidades provenientes de leis trabalhistas recentes. Belo Horizonte: Fórum, 2021. (Coleção Fórum as novas relações trabalhistas e o futuro do Direito do Trabalho. Tomo II), p. 256, 275 e 276.

[11] Artigos 818, § 1º da CLT.

[12] LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? 1 ed. 3ª tiragem. CL EDIJUR: Leme/SP, 2016, p. 52.

[13] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. III, t. 2. p. 158 apud OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. O Dano Extrapatrimonial Trabalhista após a Lei n. 13.467/2017. Revista LTr, São Paulo, ano 81, n. 09, 2017, p. 1057.

[14] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 232.

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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