*Nirsan Grillo Gomes Dambrós, Mestranda em Sociologia das Organizações e do Trabalho; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade de Lisboa; nirsangrillodambros@gmail.com; @omundodolabor

Com o desenvolvimento tecnológico, o que podemos esperar do futuro do trabalho? Os trabalhadores perderão seus postos de trabalho? Algumas profissões se tornarão obsoletas? Os operários deixarão as fábricas porque serão substituídos por robôs? Será que isso faz sentido mesmo ou existe interesse do capital na difusão dessas ideias?
Todos esses questionamentos giram em torno de uma possível eliminação do trabalho vivo (aquele desempenhado por força de trabalho humano) pelo trabalho morto (o desempenhado por máquinas, com a substituição de trabalhadores por tecnologia maquínica). Ou, de outra sorte, máquinas exigindo dos vivos, um trabalho também maquínico, numa espécie de “desantropomorfização do trabalho” que faz morrer aos poucos a possibilidade de resistência, de organização e de confrontação a esse vigoroso processo de precarização estrutural do trabalho a partir da inserção tecnológica no modo de produção capitalista.
A despeito da acepção fim do trabalho com a inserção tecnológica no modo de produção capitalista, a temática sobre o trabalho e suas derivações são prementes. Em verdade, o que vemos hoje, ao invés do fim do trabalho, é uma ampliação do trabalho precário a partir das novas tecnologias. Sobretudo, se considerarmos o vigoroso processo de reestruturação produtiva em curso com o desenvolvimento da chamada Quarta Revolução Tecnológica, fenômeno recente que teve seu início a partir de 2011 na Alemanha, com o propósito inicial de gerar um profundo e significativo salto tecnológico nos processos produtivos a partir de novas Tecnologias de Informação e Comunicação (1). Além disso, é preciso considerar, conforme Ricardo Antunes, o emblemático surgimento de um novo proletariado do setor de serviços que ascende na nova morfologia do trabalho (2).
Com os desenvolvimentos tecnológicos, combinados com robotização, automação de tarefas, internet das coisas, impressão 3D, etc., surgidos a partir da Indústria 4.0, irrompe um cenário de grande transformação no mundo do trabalho a nível global, no qual o mundo produtivo passa a viger sob uma nova lógica de integração digital de todos os processos: design, manufatura e administração e, dessa forma, apresentando ganhos em produtividade, confiabilidade, adaptação às necessidades e velocidade do cliente (3). Todos esses recursos aplicados a partir de inteligência artificial, em conjunto com a internet, com todo o maquinário conectado entre si e interligado, de forma mais robotizada e automatizada em toda a cadeia de valor, com toda a logística empresarial controlada digitalmente através de inteligência artificial com os vários setores produtivos, em uma velocidade nunca antes experimentada no mundo do labor, faz transformar não apenas o trabalho, mas a sociedade como um todo (4).
Tudo isso vem acompanhado do aumento da velocidade da internet (que tem relação com as novas tecnologias 5G) e sua disseminação, na medida em que possibilita melhor interação e mais velocidade em uma série de processos no mundo do trabalho. A revolução tecnológica sai da esfera industrial e passa a influenciar o setor de serviços e o mercado de trabalho em amplitude global.
No entanto, conforme demonstrado por Christophe Degryse (5), a expansão tecnológica apresenta algumas ambivalências ou contradições: ao passo em que permite que o trabalho seja menos pesado, seja mais eficiente e aumente a produção, ao mesmo tempo, tende a aumentar a intensidade e a deteriorar sua qualidade, criando empregos “líquidos”, reduzindo o trabalho qualificado e aumentando sua intensidade, sem qualquer regulamentação quanto ao desempenho da atividade, tampouco organização coletiva formal e regulamentada.
Um enorme contingente internacional de trabalhadores está inserido nessas transformações. Isso não significa que algumas áreas não estejam se transformando. De fato, há um processo de transformação estrutural, com mudança em vários empregos. Mesmo assim, isso não significa a perda de força da classe trabalhadora, muito pelo contrário. A classe trabalhadora nunca foi tão expressiva nas sociedades capitalistas quanto na contemporaneidade. Segundo a OIT (6), existem 3,3 bilhões de trabalhadores no mundo, sendo 2 bilhões na economia informal, representando a fatia mais vulnerável do mercado de trabalho.
Em um contexto de enorme crise do capital a partir da Pandemia pelo novo coronavírus, a importância da classe trabalhadora nunca foi tão evidente. Muitos trabalhos tidos como essenciais são desempenhados por força de trabalho humano. E mesmo se pensarmos nos dispositivos móveis, recursos tecnológicos, robôs, etc., todos são produto do desenvolvimento do trabalho humano, “ainda que seja imaterial, intelectual e científico” (7). Atualmente, conforme Iuri Tonelo, podemos considerar que a força de trabalho fabril é menor que no início do século XX, mas, mesmo assim, ainda mantém uma força incontestável, ao passo que a revolução tecnológica e reestruturação produtiva foram combinadas com transformações na divisão internacional do trabalho, criando nichos de robotização e automação, mas também mantendo enormes polos industriais concentrados em alguns países, de modo que o capital continua a necessitar de imenso trabalho vivo, de forma intensiva, sobretudo na periferia do capital.
Se pensarmos nas recentes transformações no mundo do trabalho, o que vemos é um crescente processo de superexploração e precarização laboral a partir das novas tecnologias. Portanto, para além de trazer benefícios à sociedade em diversos aspectos, o desenvolvimento tecnológico tem servido aos interesses capitalistas, na medida em que impulsiona e acelera o processo de exploração da classe trabalhadora, sobretudo, a partir do controle (de processos e do trabalho). Ricardo Antunes ressalta que as principais características do novo mundo do trabalho (digitalizado e inserido no setor de serviços) é de precarização total, flexibilização total, disponibilidade total e encobrimento da modalidade de trabalho pela prestação de serviços. A novidade, portanto, é a precarização por meio da “uberização” do trabalho, na medida em que camufla a relação capital-trabalho a partir do discurso ideológico do empreendedorismo.
Nas novas dinâmicas das relações capital-trabalho que surgem a partir dessa reestruturação produtiva e reconfiguração do trabalho na contemporaneidade, ter um trabalho em situação de superexploração pode ser considerado uma espécie de privilégio. Isso reflete, de certa forma, o novo espírito do capitalismo em curso, no qual uma massa de trabalhadores e trabalhadoras se submetem ao novo “normal” nas sociedades capitalistas: o trabalho terceirizado, o “freela fixo”, a informalização, a uberização, etc. e o total desamparo das leis protetivas do trabalho. Tudo isso, tendo em conta uma imensa massa de força de trabalho sobrante em escala global que, agora com a internet, plataformas digitais e dispositivos móveis, pode acessar trabalhadores de qualquer parte do globo. O conceito de trabalho imigrante parece assumir novos contornos a partir desse contexto laboral.
As relações capital-trabalho assumem novas formas a partir da burla do assalariamento e transferência de riscos aos trabalhadores e trabalhadoras na nova Economia de Plataforma, através da falácia do empreendedorismo, que nada mais é que auto-emprego ou como é chamado: “empreendedorismo de sobrevivência”, “empreendedorismo-de-si-mesmo” e outras expressões magníficas de alguns sociólogos do trabalho, como Ricardo Antunes, que desnudam esse véu ideológico nos discursos empresariais.
Nesse sentido, qual o futuro do trabalho? O que podemos esperar diante desse cenário extremamente pesaroso a partir da inserção tecnológica com exploração laboral intensificada em seus ritmos, tempos e movimentos, com redução do estado de bem estar social e intensificação do ideário e da pragmática neoliberal no mercado de trabalho? Ao que parece, as novas tendências se tornarão irreversíveis se não houver confrontação e intensa mobilização por parte da classe trabalhadora. Isso porque a ambição desmedida e avidez capitalista por mais lucros direciona o capital à intensificação da extração do mais-valor e, para que isso se viabilize, somente através da superexploração da força de trabalho.
Nas sociedades capitalistas, a distância é abissal entre empregador e empregado, capitalista e proletário, rico e pobre. Seus interesses são diametralmente opostos, sendo necessário, portanto, movimentos de resistência por parte da classe trabalhadora (de forma coletiva, com ou sem representação sindical) para que a corrosão dos direitos do trabalho possa se desvanecer ou, possa impedir que aberrações jurídicas, sob o manto de atender às demandas dos trabalhadores, sejam implementadas ao encontro dos interesses empresariais. Para exemplificar, tem-se a recente “Lei Uber” em Portugal que desmancha a relação triangular existente (plataforma digital, motorista ou estafeta e cliente), criando um quarto elemento que, na realidade, é o próprio trabalhador transformado em empresário. Dessa forma, desresponsabiliza quem de fato explora o negócio, tem poder e exerce sobre os trabalhadores com diversas formas de controle (inclusive, algorítmico): as organizações de plataformas digitais, tais como Uber, Glovo e outras.
De toda sorte, é determinante ressaltar que a transformação do trabalho a partir do desenvolvimento tecnológico pode ser positiva, na medida em que traz algumas comodidades e benesses para as sociedades e para os próprios trabalhadores, melhorando alguns aspectos relacionados ao trabalho. As novas tecnologias não são exatamente o problema, mas sim a instrumentalização que se faz dessas tecnologias no sentido de pautar agendas de precarização laboral. Ademais, o desenvolvimento tecnológico e sua respectiva inserção no mundo produtivo transforma estruturalmente o capitalismo e o próprio trabalho. Assim, a onda de inovações tecnológicas e automatização, acompanhada de inteligência artificial e vários outros recursos tecnológicos, ao passo que cria novos empregos – direcionados a trabalhadores com determinados skills e recursos necessários para acompanhar as demandas dos novos trabalhos -, em contrapartida, extermina diversos outros, nomeadamente os de trabalhadores menos qualificados, empurrando-os para a marginalidade do capital, ou seja, para o desemprego ou, na melhor das hipóteses, para a informalização, flexibilização e total precarização do trabalho.
Nas palavras de Virgínia Fontes, no livro “No entanto, ela se move”, de Iuri Tonelo, “As placas tectônicas que sustentam a ordem capitalista começam a se mover sob o peso dessas contradições insuportáveis para as maiorias (…)”. E como costuma dizer Ricardo Antunes, o capitalismo que já vinha em um movimento de intensa devastação do trabalho através da precarização, flexibilização e superexploração por meio das novas modalidades de trabalho, agora com a pandemia pelo novo coronavírus, o “capital virótico” veio pra “arrombar” de vez com a classe trabalhadora!
Para frear essa lógica nefasta do capital de generalização da precarização e destruição de direitos sociais do trabalho tão duramente conquistados através de lutas sociais, só existe um caminho: a resistência por parte da classe trabalhadora e o enfrentamento à exploração.
Referências:
(1) Antunes, R. (2020). Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 (1 ed.). Boitempo Editorial. Edição do Kindle.
(2) Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (1 ed.). Boitempo Editorial. Edição do Kindle.
(3) Degryse, C. (2016). Digitalisation of the economy and its impact on labour markets. ETUI research paper-working paper.
(4) Antunes, R. (2020). Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 (1 ed.). Boitempo Editorial. Edição do Kindle.
(5) Degryse, C. (2019). Disrupción tecnológica,¿ abandono social?. El trimestre económico, 86 (344), 1115-1147. https://doi.org/10.20430/ete.v86i344.995
(6) Para mais informações. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/04/1711972 acesso em: 29 de junho de 2021.
(7) Tonelo, I. (2021). No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo (1 ed.). Boitempo Editorial. Edição do Kindle.