*Por Viviann Brito Mattos, Procuradora do Trabalho, Doutoranda em Direito do Trabalho e Previdenciário da UERJ, Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP, Especialista em Direitos Humanos e Trabalho, pela ESMPU e Especialista em Direitos Difusos e Coletivo pela ESMP/SP.

“Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista”.
Publicado em 1891, esse primeiro parágrafo do primeiro capítulo de “Quincas Borba”, de Machado de Assis, é um convite a uma estória que diz sobre como os indivíduos se relacionam uns com os outros como coisas, números, valores, atualmente como algoritmos e, outras modalidades ardilosas de exploração de um ser humano pelo outro, que marginaliza, captura e descarta, e vontade de desfrutar as batatas da vitória e relegar aos vencidos apenas o espólio.
Na modernidade líquida, onde o imediatismo e o descarte são marcas registradas, a saga de Rubião se mostra atual na sua ilustração do quanto o sistema capitalista é devastador, ao atribuir preço a tudo e a todos, de acordo com sua utilidade (valor de uso) e pelo preço do trabalho (valor de troca).
Apesar de ser um sistema que sempre está em constante transformação, no capitalismo estas características são constantes em qualquer época, em qualquer lugar em que se faça presente: objetivo precípuo do lucro que acaba enfatizando a exploração do homem pelo homem, refletida nas relações de trabalho.
Como contraponto lógico do capitalismo nasce o Direito do Trabalho, a partir das condições de vida social decorrentes da organização econômica existentes e advindas do conflito entre trabalhadores e capital, e que tem como objeto o trabalho subordinado.
Vale lembrar que as fases históricas da atividade laborativa foram divididas a partir da dicotomia entre trabalho escravo e o trabalho livre, sendo esta pautada, essencialmente, na relação empregatícia, conforme definição do art. 3º da CLT, ou seja, no trabalho subordinado, o que deu à subordinação papel de destaque na estruturação do Direito do Trabalho.
De todos os critérios de delimitação do âmbito de proteção do Direito do Trabalho, sem dúvidas, a subordinação é um dos mais problemáticos e passível de discussão, passando, ao longo dos anos, por diversas interpretações até seu formato atual de identificação como subordinação jurídica.
A subordinação jurídica é vista como a possibilidade de o empregador organizar a atividade produtiva, dirigir a atividade do trabalhador, exercer o controle ou vigilância dos processos operativos e sancionar o descumprimento na execução do trabalho, a fim de tornar possível a realização dos objetivos perseguidos pela empresa.
Não obstante, nos últimos anos tem havido uma heterogeneidade nas relações de trabalho, que vai desde o emprego não registrado, o trabalho à margem da CLT, trabalho informal, até o atual trabalho por meio de aplicativos, em que se identificam trabalhadores que prestam serviços com pessoalidade, de forma habitual e mediante remuneração, mas submetidos não à subordinação clássica do Direito do Trabalho, mas sim a uma condição de dependência, trazendo, com isto, inúmeras dificuldades de operação para o enquadramento no conceito baseada na subordinação jurídica.
A persistência da desigualdade entre o trabalhador e o capitalista tem dado início a uma tendência, que parece ser mundial, de relativizar a hegemonia da subordinação jurídica, buscando-se uma ressignificação do conceito de dependência [1], que no Brasil figura no artigo 3º da CLT, como um dos requisitos da relação de emprego.
Da concentração dos trabalhadores em fábricas, passando pela produção em massa, até uma estruturação mais flexível, chegando ao trabalho por meio de aplicativo como forma de organização e gestão do trabalho, verifica-se que em todos os traços constitutivos gerais do sistema capitalista se mantêm, trazendo apenas elementos distintos na busca da intensificação do trabalho, concebidos dentro de um padrão produtivo tecnologicamente avançado decorrente da era digital [2].
Cada um desses períodos do processo de produção e de trabalho no sistema capitalista tiveram (e continuando tendo) ciclo disciplinar específico, com a imposição de determinadas tecnologias disciplinares e de controle para a adequação da força de trabalho aos princípios e normas que atuam de maneira a impor um tipo de comportamento necessário à reprodução do capital [3].
O controle e a disciplina na organização capitalista do trabalho, em um primeiro momento, como por exemplo no Fordismo, baseiam-se nas ordens e na sujeição do trabalhador ao empregador. Com o advento do Toyotismo, o controle e disciplina são reforçados, transformando o escopo do capital em objetivos do próprio trabalhador, substituindo as ordens pelas regras e a sujeição pela subordinação fundada em metas produtivas. [4]
Conforme vai havendo o esgotamento no regime de acumulação ocorre também a crise das tecnologias disciplinares que não se adequam aos propósitos de reprodução do capital, precisando se impor outras novas para a reorganização das formas de trabalho, visando manter intocável a autoridade do capitalismo e a dependência dos trabalhadores.
Neste sentido exsurge o trabalho por aplicativo que nada mais é do que um aspecto do movimento geral da separação social da concepção e da execução do trabalho por meio de uma forma particular de transformação tecnológica.
A mediação algorítmica no trabalho, proporcionada por esta nova forma organização econômico-social, inaugura uma nova fase de poder empresarial distinta das anteriores, com a transformação das condições de trabalho pela modificação das formas de controle e disciplina – que aparecem predominantemente, mas sem exclusividade, de forma subliminar -, embutidos na organização produtiva nuverizada, com comandos digitais que vem direto do “empregador-nuvem” para o trabalhador, que passa a ser o próprio objeto da programação e, consequentemente, da relação.
Essa nova forma de organização possibilitou a expansão das técnicas de controle e disciplina para além dos ambientes de trabalho, que cabe no bolso de qualquer pessoa, invadindo a casa, a família, o lazer e a vida cotidiana como um todo e como nunca visto antes por sua imaterialidade.
O controle e a disciplina nesta forma de trabalho se dá por meio da reacomodação da subjetividade dos trabalhadores, com a manipulação do individualismo e a imposição de metas que procuram fazer com que ocorra a adesão e enquadramento à lógica da empresa, mediante estratégias empreendidas pelas teorias organizacionais clássicas que vão desde o incentivo à produção, à integração plena à organização corporativa, passando pelos acréscimos no salário em razão do aumento de produtividade, até a destruição do sindicato como ferramenta de luta do empregado.
Dentro dessa lógica, uma das formas encontradas pelo sistema para dissimular a dependência ao capital é o incentivo para que o trabalhador seja polivalente e cumpridor de metas, atuando como “colaborador”, fazendo com que esse trabalhador se sinta responsável pelos rumos da empresa, intensificando seu ritmo do trabalho e a valorização integral do capital.
O poder capitalista, na verdade, transforma a consciência do trabalhador pela introdução de desejos e verdades que são estranhas à sua realidade, e, a partir do sucesso da cooptação ideológica do trabalhador, o indivíduo é afastado dos laços de solidariedade e se vê concordando com a exploração exercida sobre si mesmo, por uma autocoação, introjetada pelo discurso disciplinar.
No sistema atual, o discurso capitalista de cooptação é o da oportunidade de negócio, de independência financeira, de sucesso individual, liberdade e autonomia, com a propagação de um conceito “elástico” de empreendedorismo, distante daquele historicamente desenvolvido.
Por essa construção ideológica do empreendedorismo, o “empreendedor”, ou melhor, pseudoempreendedor, se apresenta como uma “terceira classe”, uma vez que o indivíduo não seria nem trabalhador, nem capitalista.
No âmago dessa construção, arrimada no “fetiche do empreendedorismo”, o trabalho plataformizado acabou se convertendo na oferta generalizada de trabalhos mal pagos, na forma de “economia do bico”, ou trabalho “on demand,”, em que os trabalhadores em sua grande maioria são vítimas do desemprego, que, juntamente com trabalhadores empregados, precarizados, marginalizados, compõem a nova face da classe trabalhadora, mais complexificada, fragmentada e heterogênea em relação àquela encontrada em passado recente. [5]
São incontáveis as empresas que vem atuando dessa forma no Brasil e no mundo, e, contrariando a mensagem que passam em seus discursos, não se sustentam financeiramente pela mera disponibilização de seu aplicativo, como uma plataforma tecnológica, mas sim pelo trabalho contratado pelos usuários, a partir de um fenômeno nada inovador: a transferência dos custos do negócio ao trabalhador e a extração do excedente da força e trabalho. [6]
O controle e a disciplina não são mais apoiados nas relações de hierarquia-disciplina, mas a partir de uma infinidade de obrigações contratuais, comandos diretos e rígidos, protocolos a cumprir, e a dependência do trabalhador estão mantidos nas mãos da empresa, oculta dentro da própria plataforma de prestação dos serviços.
A plataforma não exige a presença do trabalhador na sede da empresa, pois está não apenas no alcance de suas mãos, mas a um clique on/off de distância, de modo onipresente, onisciente e até mesmo onipotente, na medida em que os serviços são determinados e executados eletronicamente, dataficados, com uma jornada que dispensa a fiscalização, porque baseado no “trabalho por peça”, que, pelo seu baixo valor, exige o máximo de trabalho, e, com isto, jornadas maiores, sem remuneração; o poder punitivo é escamoteado pelo bloqueio/corte na plataforma, que leva na impossibilidade de produzir e, portanto, não ter acesso à percepção do valor pelo trabalho.
Essa nova estratégia de gestão da mão de obra gera uma falsa impressão de que o trabalhador goza de plena autonomia, quando, ao contrário, a liberdade é mitigada e condicionada pelos parâmetros previamente desenhados na plataforma.
Apesar da relação aparente de colaboração, no trabalho por plataforma mudam-se as tecnologias disciplinares, mas continua havendo a dependência econômico-estrutural de sempre do trabalhador ao capital, como imperativo de sobrevivência e de desenvolvimento do capitalismo.
No final das contas, independentemente do nome que se dê, tudo gira em torno de uma parte integrante da sociedade capitalista: a classe trabalhadora. E da mesma forma que trabalhador é trabalhador e capitalista é capitalista, porque não existe capitalista que não tenha por objetivo o lucro, o uso da força de trabalho, enquanto durar o regime nestes moldes, pode até mudar de nome, se fantasiar de inovação, mas continuará sendo a velha exploração de sempre: em alguns ciclos mais intensos de superexploração e outros menos, mas sempre estará presente.
A diferença está nos olhos de como se vê as novas tecnologias disciplinares e de controle para a adequação da força de trabalho, pois, quando analisada sob o paradigma da subordinação jurídica, não permite a superação da ideia fixa de um grupo restrito e “privilegiado” protegido pelo Direito do Trabalho e por isto não agrega outros trabalhadores que são igualmente (ou até mais) explorados pelo capital.
Mas, quando apreciada tendo em mente que a subordinação jurídica não é um critério único ou excludente da relação de trabalho protegido, e sob o ângulo da dependência, como complemento ou mesmo alternativa à subordinação jurídica, norteada pela causa e não pela consequência em si, pelo verbo e não pelo adjetivo, para determinar se um trabalhador juridicamente detém ou não a condição de assalariado, o objeto do Direito do Trabalho e, portanto, da proteção do trabalhador, ganha nova abrangência, caracterizada pelo trabalho explorado [7].
Significa dizer uma dependência estruturada pelo poder econômico, com a imposição de tecnologias disciplinares e de controle, adesão e integração do trabalhador à lógica e à estrutura da empresa que, somada aos clássicos requisitos da relação de emprego, sem superioridade de uns mais que os outros, é capaz de fazer uma correta qualificação jurídica do trabalho plataformizado.
Dito de outro modo, uma dependência cuja delimitação conceitual é aberta perante as realidades e apta a incorporar o desiderato do Direito do Trabalho na busca por dignidade humana e justiça social no conflito propriedade vs trabalho explorado.
Reconhecer a dependência como aspecto econômico-estrutural da relação, oriundo do poder de propriedade de um lado, e de trabalho explorado do outro, é conferir civilidade à expropriação do trabalho, suavizando-se a teoria de Quincas Borba sobre o resultado da exploração: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] OLIVEIRA, Murilo Carvalho de Sampaio. A Ressignificação da dependência econômica. Disponível em: <http://www.lex.com.br/doutrina_23774695_A_RESSIGNIFICACAO_DA_DEPENDENCIA_ECONOMICA.aspx> Acesso em: 04.jun.2021
[2] SANTOS, Cleito Pereira dos. Controle e disciplina na organização capitalista do trabalho. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/emdebate/article/download/1980-3532.2010n4p127/19843/0> Acesso em: 13.jun.2021.
[3] ANTUNES, Ricardo. (2000) Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2000.
[4] GAUDEMAR, Jean-Paul de. (1991) El Orden y la Producción: nacimiento y formas de la disciplina de fábrica. Madrid, 1991.
[5] ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018
[6] TEODORO, Maria Cecília Máximo; D’AFONSECA, Thaís Cláudia e FERNANDES, Maria Antonieta. Disrupção, Economia Compartilhada e o Fenômeno Uber. Publicado originalmente em: “Revista da Faculdade Mineira de Direito”. http://www.periodicos.pucminas.br. 2017 Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/disrupcao-economia-compartilhada-e-o-fenomeno-uber-1508245410> Acesso em 13.jun.2021
[7] OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. (2021) Uberização do trabalho, subordinação jurídica e dependência econômica. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife – ISSN: 2448-2307, v. 93, n.1, p.152-175 Abr. 2021. ISSN 2448-2307. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view/249085> Acesso em: 09.mai. 2021.