A MP 927/2020 E SEUS IMPACTOS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Imagem: Freepik

* Ana Beatriz Bueno de Jesus,

**Renata Ferreira Spíndola de Miranda e

***Wagner Ribeiro D’Assumpção

Com a globalização e a dominação neoliberal, própria do regime capitalista, o que se vê, ao redor do globo, é a fragilização e supressão dos direitos trabalhistas, com medidas de austeridade. Dessa maneira, o neoliberalismo traz a diminuição do poder estatal interna e internacionalmente, o aumento do desemprego e o enfraquecimento da “voz” reivindicativa da população, com a concentração, cada vez maior, do capital.

Nesse contexto hodierno, ocorreu a Reforma Trabalhista de 2017 no Brasil, com as Leis n. 13.429/2017 e n. 13.467/2017, seguidas pela Lei n. 13.874/2019 (a lei da “liberdade econômica”), que demonstram, ao longo de seu texto, a preponderância da liberdade de iniciativa e de livre concorrência sobre a valorização do trabalho humano, bem como a MP n. 905/2019, que, dentre outras medidas, instituiu o contrato de trabalho “verde e amarelo”, onde é colocada uma nova forma de contratação para jovens entre 18 e 29 anos de idade, com menores “encargos” trabalhistas para as empresas, ferindo, dentre outros, o princípio da isonomia, previsto no artigo 5º, caput, da CRFB/88. Tais medidas acusam um processo contínuo de reforma pró-empregador.

Nota-se uma constante tentativa de apontamento dos direitos sociais e trabalhistas como responsáveis pela crise econômica que assola o Brasil desde 2013, quando, na realidade, a própria movimentação da sociedade capitalista e suas contradições tendem a culminar em uma crise geral [1]. É o que se nota dentro do contexto atual, em que a pandemia mundial do vírus SARS-Cov-2 assola a humanidade, com mortes que crescem exponencialmente, mostrando a urgência do distanciamento social como um todo, o que inclui o ambiente de trabalho, trazendo desafios para o Direito do Trabalho a nível global. No entanto, o discurso que se propõe no Brasil é o de que as empresas precisam ser “salvas”, para que as pessoas não percam seus empregos, ainda que, mais uma vez, percam seus direitos fundamentais.

Nesse cenário, foi editada a MP n. 927/2020, em 22 de março de 2020, objeto de estudo do presente artigo, a qual dispõe sobre medidas que novamente flexibilizam os direitos laborais sob a justificativa da manutenção do emprego e da renda no enfrentamento da calamidade pública.[2]

A partir dessas compreensões iniciais do contexto histórico brasileiro, passa-se à análise objetiva dos principais pontos da Medida Provisória: 

1 – Preponderância dos acordos individuais escritos sobre as negociações coletivas e os instrumentos legais e negociais, desde que respeitados os limites estabelecidos na Constituição: de constitucionalidade questionável, tendo em vista o reconhecimento constitucional da negociação coletiva estampada nos artigos 7º, VI, XIII, XIV e XXVI; art. 8º, III e VI e art. 9º, da CRFB/88. Essa medida tende a acentuar a condição de vulnerabilidade e hipossuficiência do empregado, ignorando o desequilíbrio próprio das relações de trabalho, pois autoriza qualquer tipo de ajuste entre empregador e empregado, o qual terá, inclusive, prevalência sobre as normas dispostas na CLT. Como bem colocado por Adamovich [3], é um equívoco se pensar que a lei é capaz de gerar o equilíbrio na manifestação de vontades em uma relação de emprego.

2 – Possibilidade de alteração do regime de trabalho presencial para o teletrabalho, trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância: independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, a decisão será exclusiva do empregador, que deverá notificar o empregado (inclusive o estagiário e o aprendiz) por escrito ou por meio eletrônico no prazo mínimo de 48 horas. Fica dispensado também o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho, ignorando o disposto no artigo 75-C, §1º, da CLT. Além disso, o uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constituirá tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo.

3 – Possibilidade de antecipação das férias individuais a critério do empregador: nessa hipótese, o empregador deverá comunicar o empregado por escrito ou por meio eletrônico no prazo mínimo de 48 horas. A medida flexibiliza a regra prevista no art. 135 da CLT que determina a concessão das férias no prazo mínimo de 30 dias. Ademais, as férias poderão ser fracionadas em períodos mínimos de 5 dias corridos e poderão ser concedidas mesmo antes do término do período aquisitivo a elas relativo.

4 – Possibilidade de antecipação de períodos futuros de férias por meio da  negociação por acordo individual escrito.Autoriza-se, assim, que se antecipe a concessão das férias no período da quarentena ainda que não se tenha completado o período aquisitivo, isto é, se for estipulado 4 meses de férias durante o período da quarentena, o empregado não poderá gozar de férias até 2024. Aqui, mais uma vez, se verifica que não há nenhuma preocupação com o bem-estar do trabalhador, que terá suas férias individuais impostas unilateralmente por seu empregador, com o prejuízo de seu planejamento familiar e sua saúde física e mental, tendo em vista que ao retornar as atividades terá que produzir mais e trabalhar ininterruptamente, sem férias.

5 – Possibilidade de o empregador optar pelo pagamento do adicional de 1/3 das férias junto com o pagamento do 13º salário (20 de dezembro de 2020). A conversão das férias em dinheiro (abono pecuniário) passa a depender da autorização do empregador. Além disso, o pagamento da remuneração das férias poderá ser efetuado até o 5º dia útil do mês subsequente ao início do gozo das referidas férias.

6 – Possibilidade de concessão de férias coletivas sem a comunicação prévia ao órgão local do Ministério da Economia e aos sindicatos representativos da categoria profissional: passa a ser necessária apenas a comunicação prévia aos empregados com antecedência mínima de 48 horas.

7 – Os trabalhadores que pertençam ao grupo de risco daCovid-19 possuem prioridade para o gozo de férias e os casos de contaminação pelo Coronavírus não serão considerados doenças ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal pelo empregado.

8 – Possibilidade de suspensão de férias e licenças não remuneradas de profissionais da área da saúde ou daqueles que desempenhem funções essenciais: mediante comunicação formal por escrito ou por meio eletrônico, preferencialmente, com antecedência de 48 horas. 

9 – Possibilidade de prorrogação da jornada de trabalho pelos estabelecimentos de saúde: mediante acordo individual escrito, inclusive para as atividades insalubres e para a jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso.

10 – Possibilidade de adoção de escalas de horas suplementares entre a 13ª terceira e a 24ª hora do intervalo interjornada, pelos estabelecimentos de saúde: sem que haja penalidade administrativa, desde que seja garantido o repouso semanal remunerado.

11 – Possibilidade de antecipação do gozo de feriados não religiosos federais, estaduais, distritais e municipais: faz-se necessária apenas a notificação por escrito ou por meio eletrônico aos empregados com antecedência mínima de 48 horas, mediante indicação expressa dos feriados aproveitados. Admite-se também a utilização dos feriados para compensação do saldo em banco de horas. Contudo, para aproveitamento de feriados religiosos é necessária concordância do empregado por meio de acordo individual escrito.

 12 – Possibilidade de interrupção das atividades pelo empregador e a compensação por meio do banco de horas por até 18 meses contados a partir de 31 de dezembro de 2020.

13 – Possibilidade de suspensão do recolhimento do FGTS  referente às competências de março, abril e maio, as quais poderão ser parceladas em até 6 meses, com vencimento até o 7º dia de cada mês, sem a incidência da atualização, da multa e dos encargos: para usufruir dessa prerrogativa, o empregador fica obrigado a declarar as informações até 20 de junho de 2020. Aqui, percebe-se uma afronta ao artigo 2º, da CLT, tendo em vista que os riscos do negócio são passados para o empregado, que sofrerá um “rombo” no seu FGTS, sem nenhuma forma de atualização monetária.

14 – Possibilidade de convalidação de outras medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto na Medida Provisória e tenham sido tomadas nos 30 dias anteriores à sua entrada em vigor: essa medida, de caráter austero e de clara inconstitucionalidade, confere um verdadeiro cheque em branco para validar todas as medidas adotadas anteriormente pelos empregadores.

Dentre as medidas instituídas unilateralmente pelo Governo Federal, a que causou mais polêmica e perplexidade foi a suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses. Devida a forte rejeição e impopularidade da medida perante as instituições brasileiras e a sociedade civil, o Governo Federal voltou atrás e, por meio da MP n. 928/20, publicada no mesmo dia, revogou o art. 18 da MP n. 927/20. [4]

O que se vê, com as medidas adotadas, é uma predileção pelo empregador em detrimento do empregado, ferindo-se, sobretudo, o princípio basilar da proteção, bem como o da não-mercantilização do trabalho. 

Considerações Finais

O presente artigo buscou analisar a MP 927/2020, pontuando seu contexto social de edição e os impactos nas relações laborais. O que se notou foi uma tentativa constante de redução dos direitos sociais, haja vista a implementação de  medidas políticas, tais como: a Reforma Trabalhista de 2017 (Leis n. 13.429/2017 e n. 13.467/2017), seguida pela Lei n. 13.874/2019 (Lei da “liberdade econômica”), a MP n. 905/2019 e, agora,  a MP n. 927/2020,  que contrariam a Carta Internacional de Direitos Humanos, a qual abrange os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e Econômicos e Sociais, bem como a Declaração Universal de Direitos Humanos.

No que tange, especialmente, à MP n. 927/2020, verifica-se que há exposição de grande parte da classe trabalhadora a risco iminente de falta de subsistência, em virtude da desregulamentação de direitos sociais fundamentais, como as férias e a limitação da jornada de trabalho, sendo, ainda, equivocado excepcionar o cumprimento de normas de saúde e segurança do trabalho, justamente, no momento de crise, enquanto que o mais adequado e razoável seria reforçar as medidas, protegendo-se a vida dos profissionais .

Dessa maneira, o cenário ideal seria aquele que busca reforçar o diálogo social com a necessária intervenção dos sindicatos, buscando-se, assim, o equilíbrio das relações sociais, para evitar a precarização do trabalho e, ainda, reduzir os impactos sociais, principalmente, para os empregados hipossuficientes, porque são os indivíduos que mais serão prejudicados com a recessão.

REFERÊNCIAS:

* Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ). Advogada;

** Mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ). Advogada;

*** Mestrando em Direito do Trabalho e Previdenciário (PPGD/UERJ). Professor e Advogado.

 [1] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução: Rubens Enderle. Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo, 2013.

[2] BRASIL. Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 de março de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm> Acesso em: 23 mar. 2020.

[3] ADAMOVICH. Eduardo Henrique Raymundo von. A Medida Provisória n. 927 entre o princípio da liberdade contratual e o da igualdade de tratamento no direito do trabalho: primeiras impressões. Disponível em: <http://www.amatra1.org.br/wp-content/uploads/2020/03/MP-927-Adamovich.pdf> Acesso em: 24 mar. 2020.

[4] BRASIL. Medida Provisória nº 928, de 22 de março de 2020. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 de março de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv928.htm> Acesso em: 25 mar. 2020.

[5] Nota Pública. Medida Provisória n. 927/2020. Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT. Disponível em:http://www.anpt.org.br/imprensa/noticias/3642-para-procuradores-do-trabalho-mp-927-2020-submete-o-trabalhador-a-caridade-voluntarista-empresarial> Acesso em: 25 mar. 2020.

Autor: UERJ Labuta

O UERJ Labuta é um Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ - Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. O conteúdo dos artigos publicados possui caráter acadêmico-informativo e reflete exclusivamente a opinião de seu(s) respectivo(s) autor(es).

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