Por Renata Queiroz Dutra, Professora Adjunta de Direito e Processo do Trabalho da Universidade de Brasília. Doutora e Mestra em Direito pela UnB. Pesquisadora integrante dos Grupos de Pesquisa “Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social” (Faculdade de Direito da UFBA); “Trabalho, Precarização e Resistências” (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFBA) e “Trabalho, Constituição e Cidadania” (Faculdade de Direito – UnB); e Danilo Oliveira Santos, Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Advogado.

“Estou me guardando para quando o carnaval chegar” (2019, 1h26min) é um documentário de Marcelo Gomes, ambientado na cidade de Toritama-PE, local conhecido como a capital do jeans, por assumir atualmente a posição de segundo maior polo de confecção jeans do Brasil.
Através de um passeio pelo cotidiano e pelas narrativas dos diversos trabalhadores e trabalhadoras engajados nessa atividade em Toritama, o Diretor Marcelo Gomes nos convida a pensar as transformações do espaço geográfico da pequena cidade pernambucana após a chegada da indústria de confecções e também as contradições do sistema capitalista em sua atual conformação, ao demandar cada vez mais engajamento dos trabalhadores e trabalhadoras, oferecendo cada vez menos em troca.
Embora ocupe uma posição de destaque na produção de jeans no cenário nacional, sendo responsável pela produção de 60 milhões de peças de jeans anualmente, essa atividade tem se desenvolvido em Toritama por meio de fábricas caseiras com equipamentos adquiridos pelos próprios trabalhadores, alojadas aos fundos de suas precárias residências, sendo operacionalizada juridicamente por meio de “contratos de facção” com as empresas de confecção locais.
É por isso que, a despeito da paisagem de uma cidade industrial, com a rotina, os ruídos e a absorção de força de trabalho de uma fábrica fordista, segundo dados do IBGE de 2010, 94,5% dos trabalhadores do local são informais, assim compreendidos os que não possuem vínculos de emprego ou de outra natureza trabalhista com as tomadoras dos seus serviços e que, portanto, não se encontram acobertados pela proteção previdenciária [[1]].
Orgulhosos de serem os próprios chefes, os “proprietários” destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto no carnaval: nessa semana de folga, eles, se necessário, até vendem os poucos utensílios domésticos que acumularam ao longo do ano, para custear uma viagem de descanso para as praias do litoral pernambucano.
O documentário retrata as nuances da composição da força de trabalho da confecção do jeans em Toritama: “produtores autônomos” das facções (fábricas de confecção domiciliares em que empregam amigos, parentes e vizinhos) e iniciativas de “micro empreendedorismo amador” (da estilista que faz uma customização a laser de peças até o trabalhador que se autointitula “vitrine humana”). Quando interpelados pelo documentarista, a maioria desses sujeitos demonstra satisfação pela sensação de realização e por um suposto sentimento de dignidade experimentado pelo trabalho que fazem e pela renda que auferem.
Ao confrontar a realidade anterior de Toritama, cidade pobre e sem atividades econômicas que absorvessem a força de trabalho a contento, as narrativas elogiosas dos trabalhadores adquirem algum sentido. Entretanto, com sutileza, essa satisfação é posta em xeque no documentário por meio de trechos em que o cotidiano de sacrifícios dos entrevistados escapa em seus relatos: seja a resposta pensativa de que “não é difícil” o trabalho do jeans vinda de um trabalhador que antes já foi cortador de cana e carregador de caminhão ou da narrativa da “estilista” de jeans que releva passar a maior parte do dia dentro do carro se deslocando para fazer as encomendas.
Entre os arranjos jurídicos que conformam Toritama, destaca-se, notadamente, o contrato de facção, modalidade contratual empresarial. Como pontuam os pesquisadores críticos da terceirização, como Magda Biavaschi, o contrato de facção, nos moldes em que praticado pelas indústrias de confecção, acaba por se confundir com uma forma de terceirizar a atividade-fim das fábricas para o interior das residências de trabalhadores, por meio da qual as empresas não assumem responsabilidade jurídica pelo trabalho que exploram. Ao conceber terceirização a partir de um conceito amplo que abrange toda interferência de terceiro na relação entre empregado e empregador e desemboca na sua compreensão como “estratégia de negócio”, Biavaschi evidencia a prática como um arranjo contratual incompatível com a materialidade das relações de trabalho, que conduz a que o sujeito subordinado que entrega sua força de trabalho a um tomador seja juridicamente tratado como empreendedor e parte de um contrato empresarial [[2]], cuja principal função é alijá-lo da titularidade de direitos trabalhistas e imputar a ele riscos da atividade econômica.
Após aquisição do know how da produção de jeans, os trabalhadores de fábrica colocam como meta adquirir máquinas (muitas vezes por meio de acordos para quitação das verbas trabalhistas com seus antigos empregadores) para estabelecerem, em suas próprias casas, minifábricas assemelhadas às corporações de ofício da Idade Média. Todavia, diferente dessas, em que os aprendizes adquiriam a expertise de mestre com o passar do tempo e nas quais a gestão do trabalho e o seu rendimento eram empreendidas pelos mestres com autonomia, nas denominadas “facções”, o trabalho desempenhado adquire contornos subordinados (pela mera reprodução de um padrão previamente estabelecido pelo tomador) e características intensificadas (uma vez que o rendimento baixo decorrente do trabalho empregado em cada peça obriga os trabalhadores, economicamente dependentes, a praticar jornadas extensas e desprovidas de pausas regulares), traduzindo-se em burla à regulação jurídica trabalhista.
Nessas facções opera-se uma verdadeira cadeia de terceirização: as peças produzidas passam por diversas facções, para que cada uma acrescente um detalhe: uma faz o zíper, outra faz um detalhe no tecido, outra costura o cós, outra apenas faz o bolso… Ou seja: uma reprodução prática da linha de montagem, sendo que todas as etapas têm em comum o fato de terem sido expulsas da fábrica e alojadas nos domicílios dos trabalhadores, sendo, por consequência, alijadas da proteção social incidente sobre as relações de trabalho.
Diferente do trabalho repetitivo do modelo fordista, em que o trabalhador subordinado era reconhecido como empregado e titularizava direitos trabalhistas, na realidade pós-fordista de Toritama, a fábrica invade a casa e a repetição do padrão de subordinação não tem por consequência o reconhecimento do vínculo de emprego. Do contrário, a falácia do empreendedorismo e da autonomia faz com que os trabalhadores assumam riscos econômicos da atividade, trabalhem mais horas sem fiscalização dos limites de jornadas, não tenham proteção social trabalhista e previdenciária e, ainda, obtenham rendimentos tão baixos ou até menores que os de um assalariado.
Entretanto, aproveitando-se do cenário de miséria e subdesenvolvimento de Toritama, essa realidade precária de uma “nova informalidade” [[3]] no trabalho é “vendida” como ouro. Nesse contexto, ganha dimensão a ilusão do operário quanto à ascensão representada por empreender, “trabalhando para si mesmo”: fazendo o mesmo trabalho braçal das fábricas, incessante e repetitivo, dia após dia, mas agora no “conforto” de seu lar e com o engodo de ser seu próprio patrão, já que as poucas pausas são feitas independente de prévia solicitação/supervisão, mas ao custo do rendimento do trabalho.
Os “autônomos” revelam ter suas subjetividades já moldadas pelos desígnios capitalistas por meio de falas como “se a gente trabalha mais, a gente ganha mais” ou quando, em determinada narrativa, é confidenciado o “privilégio” proporcionado pela produção diária de 1000 peças, que pode gerar um lucro de quase 100 reais por dia, pois muito provavelmente aquele seria um rendimento inalcançável em qualquer outra atividade laboral em Toritama. Tal aspecto é evidenciado também em outro trecho do documentário em que um operário ganha a promessa de “futuro promissor”: a força de trabalho empregada como servente de pedreiro na construção de uma habitação é a garantia de uma moeda de troca para a “oportunidade” de vir a trabalhar futuramente nessa casa, em que funcionará uma nova fábrica de quintal.
De forma sutil, o documentário evidencia o círculo vicioso da falta de diversificação e da cristalização do mercado de trabalho da confecção na cidade, com a paulatina extinção de empregos rurais de extrativismo e da pecuária. Em determinada cena, uma dona de casa faz serviços domésticos enquanto toma conta de uma criança e, ao começar a “brincar” com a máquina de costura, a criança é repelida por meio de gritos: “vá pra outro setor, menino, vá”. A frase soa como presságio de que, muito provavelmente, o menino levará adiante o sustento “pelo jeans”, absorvido pela falsa lógica da liberdade de empreendimento no setor de confecção de Toritama, que contraditoriamente, se impõe como único destino aos seus habitantes.
O design de áudio do filme desempenha o protagonismo de um personagem. Ele faz com que quem assista perceba, por outros sentidos, a realidade da qual os entrevistados parecem estar anestesiados pela monotonia e repetição de movimentos. A cena marcante em que o som é cortado, com uma trilha sonora clássica ao fundo, traduz o estranhamento do diretor àquela realidade de trabalho repetitivo a que os trabalhadores da cidade de Toritama parecem estar alheios: “o barulho da máquina me deixa ansioso. Corto o áudio. Coloco uma trilha sonora. Mudo o ponto de vista. Mas a luz da repetição continua a mesma”.
Para além do incremento da alienação do trabalhador ao realizar movimentos repetitivos, que dialoga com a perspectiva de apertar de parafusos do filme “Tempos Modernos” de Chaplin, e das imagens de pilhas jeans pra todo lado, é notória a dualidade existente entre aquele “império” que garante o sustento das famílias e a extenuante jornada que se inicia as 6h da manhã e só termina às 22h: “ aí a gente para, toma banho e fica morto na cama”.
Nesse contexto, soa irônica a afirmação de que os habitantes de Toritama sejam “donos do seu próprio tempo” e ganha significado o título da película. O carnaval oferece aos moradores a possibilidade de escapismo momentâneo: “os donos dos próprios tempos” têm, talvez, como única manifestação de liberdade, uns dias de feriado no carnaval, quando viajam para o litoral.
A ilusão da liberdade é demonstrada quando os 365 dias do ano, com jornadas extenuantes de trabalho, são trocados por sete dias (ou menos), de uma liberdade custosa, cuja necessidade é compartilhada de forma unânime pelos habitantes do município, que então deixam a cidade deserta, fazendo, por um breve momento, cessar o ininterrupto ruído das máquinas.
[[1]] SANTOS, Breno Bittencourt; VASCONCELOS, Valtemira Mendes Vasconcelos. Fatores socioeconômicos e demográficos associados ao trabalho informal: o caso de Toritama, Pernambuco, Brasil. Revista Contemporânea, v. 8, n. 1 p. 289-316, Jan.–Jun. 2018. http://dx.doi.org/10.4322/2316-1329.060
[[2]] BIAVASCHI, Magda Barros. A terceirização e a justiça do trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Porto Alegre, RS, v. 74, n. 4, p. 67-88, out./dez. 2008.
[[3]] KREIN; José Dari; PRONI, Marcelo W. Economia informal: aspectos conceituais e teóricos. Brasília: OIT, 2010.