* por Juliana Teixeira Esteves, Tieta Tenório Bitu, Vitor Gomes Dantas Gurgel, Raissa Lustosa Coelho Ramos, Assíria Nicácia Landim Freitas e Aline Araujo de Albuquerque Melo [1][2]
A categoria de pessoas que trabalham com cuidados tem muito a dizer sobre as relações de desigualdade existentes na nossa sociedade, em especial as empregadas domésticas, categoria profissional classicamente feminina e desvalorizada, alvo de desigualdade social. O caso de Miguel [3] nos permite pensar sobre a realidade da maioria dessas mulheres: que, por pertencerem às camadas mais periféricas da sociedade, acabam trabalhando como empregadas domésticas nos lares de pessoas brancas.
Esse padrão é herança da estruturação patriarcal e hierárquica do período escravocrata, em que cabia às escravas a realização das obrigações domésticas e o cuidado com a prole das “sinhás”. Afinal, o Trabalho Doméstico teve seu marco histórico no período colonial; a atividade doméstica era desempenhada por mulheres negras, escravas, que assumiam funções de amas de leite, mucamas, costureiras, aias, cozinheiras, babás, sofrendo explorações das mais diversas. Em 1886 surge o Código de Posturas do Município de São Paulo, instituindo diversas restrições de direitos aos empregados domésticos. A partir de uma nova configuração de moradia, a urbana, surge um novo cômodo, com moldes anteriormente assentados na Casa Grande e senzala: o quartinho da empregada.
Após a abolição, diante da falta de oportunidades de trabalho remunerado e sobrevivência, muitas continuaram nas casas de seus ex-proprietários, exercendo atividades domésticas. As intersecções entre raça, classe e gênero atravessam a vida da patroa e da empregada. No século XIX eram comuns manuais de economia doméstica, com prescrições de comportamento para a mulher branca tornar-se boa dona de casa, esposa e defensora da família, sendo estas as características que iriam definir o modelo universal de feminilidade. Todavia, a mulher negra e a trabalhadora doméstica, eram vistas como fonte de proliferação de doenças e imoralidade para a família, sendo necessário controlá-las através de coação, como a ameaça de desemprego [4].
O constrangimento e a ameaça, que colocam as trabalhadoras domésticas em risco para que continuem a servir seus patrões mesmo diante de uma pandemia, não são novidades da burguesia, mas heranças de uma branquitude colonialista brasileira.
O Estado de Pernambuco instituiu o lockdown entre os dias 16 e 31 de maio, mas empregadas domésticas e cuidadoras que trabalhassem em residências cujos empregadores exercessem atividades essenciais ou integrassem grupo de risco foram deixadas de fora da quarentena. Segundo Amanda Souza, prima de Miguel, Mirtes e sua mãe, Marta – também trabalhadora doméstica contratada pela família – contraíram o covid-19 com o patrão e, mesmo assim, continuaram a trabalhar.
Angela Davis elucida a desvalorização do trabalho doméstico a partir da consolidação do capitalismo e a Revolução Industrial, quando toda a economia se desloca para longe do ambiente privado. A mercadoria produzida nas fábricas, diferentemente das tarefas domésticas, satisfaz a demanda de lucro do empregador, a partir disso, “o trabalho doméstico foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a atividade assalariada capitalista” [5]. Para além disso, o próprio conceito de profissão desenvolvido pela sociedade classista requer atributos exclusivos, conhecimentos científicos e técnicos, obtidos após uma longa formação. Partindo dessa concepção, o trabalho realizado dentro das nossas casas é visto como natural, como uma ocupação e não profissão, o que limita seu valor econômico e desqualifica esse trabalho.
Como consequência desses aspectos, a profissão de trabalhadora doméstica teve seus direitos consolidados muito tardiamente e de forma ainda muito precária, com salários instituídos na base do mínimo, e ainda assim na informalidade.
A primeira regulamentação do trabalho doméstico no Brasil se iniciou apenas com a Lei n.º 5.859/72, pois a CLT expressamente excluiu esse tipo de trabalho do seu âmbito de proteção. A referida Lei foi alterada sucessivas vezes para, apenas em 2001, instituir o direito ao seguro desemprego, e só em 2006 passar de 20 dias para 30 dias de férias, ter direito à estabilidade gestante e não sofrer descontos salariais relativos a alimentos consumidos, moradia (na hipótese de dormir no trabalho), vestuário e itens de higiene.
Apesar da Constituição Federal de 1988 ter garantido o salário-mínimo, o 13º salário e a licença maternidade de 120 dias, excluiu a classe das domésticas dos direitos previstos e assegurados aos demais trabalhadores e trabalhadoras urbanas e rurais.
Os próximos grandes avanços foram a Emenda Constitucional n.º 72/13 e a Lei Complementar nº 150/15, apesar de significativo avanço em relação à normatização pretérita não tratar de dignificar plenamente o trabalho doméstico remunerado com uma real equiparação ao restante dos trabalhadores estáveis. Embora com alguns aspectos mais protetivos como pagamento em dobro de domingos e feriados, FGTS, dentre outros, possibilitou a potencialização da exploração através de banco de horas, possibilidade de negociar diretamente compensações de carga horária, contrato de trabalho doméstico temporário e por tempo parcial.
Sobre essa forma de precarização laboral a partir da jornada diferenciada, Cláudia Nogueira acrescenta que a modalidade de degradação dos direitos está reservada para a mulher trabalhadora, porque o capital, além de reduzir ao limite o salário feminino, também necessita do tempo de trabalho das mulheres na esfera reprodutiva, que é imprescindível para o processo de valorização do capital, uma vez que seria impossível o capital realizar o ciclo produtivo sem o trabalho feminino na esfera reprodutiva [6] .
A divisão sexual e racial do trabalho e a institucionalização da opressão
A divisão sexual do trabalho é um termo usado para se referir à diferenciação de tarefas e responsabilidades entre homens ou mulheres por razão exclusiva de seu sexo biológico, que é não apenas decorrente das relações sociais entre os sexos, mas da forma de reprodução social. Nesse sentido, são historicamente reproduzidas situações que destinam homens à esfera de trabalho produtiva – consequentemente a funções com maior valor social agregado – e mulheres à esfera reprodutiva, intrinsecamente ligada ao trabalho doméstico [7].
Por isso, o trabalho doméstico ainda é majoritariamente considerado atribuição feminina, e por causa da divisão sexual do trabalho as mulheres ainda lutam em dobro para conquistar seu lugar no mundo do trabalho produtivo. E ainda que nas últimas décadas tenha havido uma crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho, isso não significou uma modificação nas relações de trabalho doméstico [8].
Nessa divisão sexual do trabalho é possível ainda fazer um segundo recorte, que é a divisão racial do trabalho. As mulheres pretas e pardas ainda são as mais vitimadas pelas desigualdades propagadas na sociedade. A partir de dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), o Ipea constatou que o trabalho doméstico é expressivamente ocupado por mulheres negras, de baixa escolaridade e de famílias pobres. E mais, empregadas domésticas brancas tem salários maiores que as negras em todas as regiões do Brasil [9].
Uma violência institucionalizada significa que as opressões sofridas por aquele grupo ou grupos de pessoas pode ocorrer em qualquer instância da sociedade, desde órgãos públicos até instituições de ensino, empresas privadas e públicas, etc. O problema é que quanto mais institucionalizada uma opressão, mais ela se naturaliza na sociedade. Um exemplo disso é como o genocídio da população negra torna-se apenas estatística no imaginário popular, sem capacidade de chocar ou revoltar a população.
A sintomática tragédia do menino Miguel aconteceu durante a onda de protestos antirracistas que ecoa nos Estados Unidos, diante da violência policial que assassinou George Floyd. E, no mesmo momento em que ecoam os gritos de “vidas negras importam”, no dia 3 de junho de 2020, o mesmo da morte de Miguel, o vice-presidente Hamilton Mourão publicou um texto em que afirma não existir racismo no Brasil e ainda intitula os protestos pela democracia e antirracistas como “baderna”. O timing não poderia ser mais preciso para denotar a crise de humanidade que vivemos [10].
O caso Miguel nos convida a repensar estruturas de opressão na nossa sociedade
O caso Miguel expõe as estruturas hierárquicas impostas pela lógica escravista na sociedade brasileira, e o porquê da banalização do sofrimento de vidas negras e pobres, e o motivo de um menino de apenas 5 anos não ter sido digno de cuidados de uma adulta que estava responsável por ele naquele momento.
O acidente que proporcionou a morte de Miguel demonstra a internalização de uma cultura escravista e colonial institucionalizada. Mirtes, preta, empregada doméstica, sai de sua casa mesmo durante a quarentena, para cuidar da casa dos outros, brancos, enquanto não há quem cuide da sua. Realidade de milhões de mulheres no Brasil, invisibilizadas pela sua origem, cor e classe social.
Ainda hoje, a violência estrutural, simbólica, física, de gênero e principalmente institucional são mais acentuadas na população negra.
Por fim ainda, cabe a reflexão sobre a alienação da vida das empregadas domésticas, suas condições de trabalho e como a sociedade ainda enxerga esse ofício, reproduzindo as mesmas estruturas.
REFERÊNCIAS
[1] Juliana Teixeira Esteves é professora de Direito do Trabalho na graduação e pós-graduação da UFPE, Phd em Economia política no IRES/França, doutorado em Direito. Tieta Tenório Bitu é doutoranda em Direito na UFPE e professora universitária. Vitor Gomes Dantas Gurgel e Raissa Lustosa Coelho Ramos são mestrandos em Direito na UFPE. Assíria Nicácia Landim Freitas e Aline Araujo de Albuquerque Melo são pesquisadoras e graduandas em Direito na UFPE.
[2] O artigo foi escrito coletivamente por pesquisadorxs do grupo de pesquisas/CNPQ ‘Direito, Economia e Política’ da UFPE. E-mail: gdireitoeconomiaepolitica@gmail.com
[3] BRASIL DE FATO. Morte do menino Miguel, em PE, tem raízes escravocratas, diz líder de domésticas. 5 de jun. 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/06/05/morte-do-menino-miguel-em-pe-tem-raizes-escravocratas-diz-lider-de-domesticas>. Acesso em: 6 de jun. 2020.
[4] SANTOS, Judith Karine Cavalcanti. Quebrando as correntes invisíveis: Uma análise crítica do trabalho doméstico no Brasil. 2010, 85s. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) Universidade de Brasília Faculdade de Direito, Brasília-DF, 2010.
[5] DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. P. 230.
[6] NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. Feminização no Mundo do Trabalho: Entre a Emancipação e a Precarização in: ANTUNES, Ricardo e SILVA, Maria A. Moraes (org.) O avesso do trabalho. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2014. p. 252
[7] HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, set./dez. 2007, pg 599. [Disponível em <http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005> acesso em 11de setembro de 2017.
[8] ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA, Verônica. Trabalho produtivo e reprodutivo no cotidiano das mulheres brasileiras. In. Trabalho remunerado e trabalho doméstico no cotidiano das mulheres. Recife: SOS Corpo, 2014. Artigo 1, p. 18.
[9] PINHEIRO, Luana et al. Os Desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. 2019.
[10] ESTADÃO. Opinião e princípios. 3 de jun. 2020. Disponível em: <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,opiniao-e-principios,70003322799>. Acesso em: 4 de jun. 2020.
[11] SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Almedina. Coimbra, 2020;